RAPensando as sílabas

Uma das tarefas desafiadoras para o educador é introduzir as sílabas complexas no processo de alfabetização. Além do desinteresse dos alunos, em muitos casos, uma aparente falta de conexão entre o conteúdo proposto pelos professores. Por isso a proposta de se trabalhar temas e assuntos atuais se faz pertinente.

O hip hop é uma cultura urbana que nasceu nos Estados Unidos conforme ressalta Teperman:

Há um consenso na bibliografia especializada de que, tal como o conhecemos, o rap surgiu nas festas de bairro realizadas por imigrantes afro-caribenhos do Bronx, no bairro pobre de Nova Iorque, no início dos nos 70. Acoplando poderosos equipamentos de som a carrocerias de caminhões e carros grandes (os chamados “sound systems”), DJs como Kool Herc e Grand Master Flash animavam festas de rua com ritmos latinos, funk soul e reggae. (TEPERMAN, 2011, p.20).

No Brasil sua datação é do final dos anos 1970 na estação de metrô São Bento da cidade de São Paulo. Obviamente em diversas outras localidades a cultura pode ter surgido (concomitantemente), mas o marco “simbólico” é situado em São Paulo, não obstante, serem os rappers paulistas os mais famosos do Brasil.

Um dos elementos da cultura hip hop é o rap, uma sigla da expressão inglesa rhythm and poetry, que trazida significa: ritmo e poesia. Talvez seja essa a definição que nos auxilie a pensar no projeto de letramento das sílabas complexas em concomitância com a poesia do rap.




Além da rima e das divisões silábicas pode-se trabalhar com a música, que além da questão rítmica e compassada possibilita a abertura para que se trabalhe com outros elementos de melhor assimilação por porte dos alunos e alunas. Sendo assim, o elemento musical é um forte aliado no que diz respeito à “acomodação” pois sua dinâmica possibilita tal abordagem. Vejamos a seguinte definição:


 

Dentre as linguagens mais utilizadas vale destacar o uso da música. Trabalhar com música é fácil, didático e aproxima o professor do aluno na medida em que contribui na identificação de diferentes significados nas representações daquilo que o aluno ouve e associa ao que vive, uma vez que o ensino fundamenta-se na estimulação que é fornecida por recursos didáticos que facilitam a aprendizagem (PERCILIANO, 2018, p.141).

É importante ressaltar como é significativa uma abordagem que contemple a realidade dos educandos em consonância com o conteúdo proposto. A realidade por vezes proposta nos materiais adotados, via de regra, tende e reproduzir um padrão. Com raras exceções esse padrão diz respeito a uma realidade distante dos interiores e periferias do Brasil. Por isso alguns conteúdos são recebidos com falta de estímulo e dificuldades por alunos e alunas, pois não falam a sua realidade.

O intuito da interação é fazer presente a perspectiva do diálogo não somente numa prescrição curricular, mas como prática efetiva visando não somente a formação curricular, mas também a formação crítica de emancipação do sujeito histórico. Somente o diálogo possibilita tal interface. Sendo assim destacamos as palavras de Paulo Freire sobre a educação como forma de diálogo

O diálogo fenomeniza e historiciza a essencial subjetividade humana; ela é relacional e; nele, ninguém tem iniciativa absoluta. Os dialogantes “admiram” um mesmo mundo; afastam-se dele e com ele coincidem; nele põem e opõem-se. Vimos que, assim, a consciência se existência e busca perfazer-se (FREIRE, 1994, p.3).

Na atualidade não cabem mais modelos de educação “bancária”, pois a realidade não permite que assim seja feito. Para escapar a essa categorização muitos métodos são colocados como interativos, mas não se comprometem, de fato, com o diálogo em busca de uma educação emancipadora. Por meio da poesia do rap e das sílabas complexas visa-se muito mais do que ensinar. Visa- se formar cidadãos e cidadãs que problematizam sua realidade e conseguem dialogar com ela.

Perciliano levanta a seguinte questão: 

Além disso, aceitar a música como um novo documento e fonte de saber escolar, demonstra que a disciplina cede ao diálogo com as novas práticas e saberes escolares, portanto com o currículo, incorporando essas práticas, na medida do possível aos livros didáticos. Daí vem o seguinte questionamento: como o currículo escolar pode abordar essas práticas de ensino? (PERCILIANO, 2018, p.142)

Respondendo à questão de Perciliano, assinala-se que sim. O currículo pode abordar na perspectiva do diálogo e da inteiração com a realidade de maneira crítica e propositiva. Visto que não se trata somente de introduzir novos conceito, mas de coloca-los em constante interação com a realidade visando utilizar as palavras e situações do cotidiano na proposta pedagógica.


Há uma gama de alunos, sobretudo, de periferia que se encontram em contexto de violência e opressão. Em algumas dessas realidades o Estado não se demonstra eficaz, uma vez que, não consegue dirimir as desigualdades sociais posta em seu seio. Dessa maneira uma das alternativas para a educação emancipatória é ser ela problematizadora da violência.

Sobre esse tema Weihmüller, Siqueira e Silva destacam o seguinte:

 

A respeito das relações entre violência e hip hop recuperamos os trabalhos realizados por Fonseca (2011; 2015), D’andrea (2013) e Takeiti (2014). A primeira pesquisa, da área dos estudos da Linguagem, tem como objetivo “justificar a didatização e a inserção curricular do rap nacional na grande área de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias do Ensino Médio, sobretudo no tocante ao ensino de Língua e Literatura”. Após demonstrar o valor poético-linguístico de letras de Rap Nacional, a violência é colocada em foco, concluindo que “longe de incitar à violência, a análise dessas letras pode contribuir para uma melhor compreensão de suas causas e efeitos, possibilitando que o aluno desenvolva uma leitura crítica desse e de outros problemas do mundo contemporâneo” (Fonseca, 2011, p. 13). Em um artigo posterior (Fonseca, 2015), a autora aprofunda no debate sobre hip hop e currículo, manifestando seus argumentos a favor dessa articulação. Para melhor aproveitar o potencial da criança na idade em que o lúdico possui forte valor é necessário compreender que a brincadeira é uma espécie de mediação da criança em relação ao mundo. Da mesma forma que a palavra para os adultos é capaz de expressar os sentidos e significados que o mundo adquire, a brincadeira para as crianças possui esse valor (WEIHMÜLLER; SIQUEIRA; SILVA, p.62, 2017)

O sentido dessa problematização e da escolha do tema se faz por alguns motivos. Primeiramente pelo fato de as crianças e jovens serem sujeitos de suas atitudes e por isso serem passivos de sentimentos assim como as demais pessoas. Segundo por não serem considerados “tábulas rasas” ou simplesmente depositários de conhecimento. Terceiro pelo fato de diante da realidade e com os instrumentos fornecidos pela interface como o hip hop poderem interagir e expressar-se de forma propositiva.

Levando em consideração os fatores supracitados visa-se propor uma abordagem contextualizada e adaptada à realidade dos alunos e alunas de uma realidade específica de periferia. A identificação com as letras de rap e canções diversas se faz notar do dia-a-dia da escola. O estímulo a se pensar uma abordagem inclusiva, no sentido cultural, se faz por meio da interação e recepção da cultura popular no ambiente curricular.

Por vezes parlendas como: meio dia/ macaca Sofia/ panela no fogo/ barriga vazia não fazem sentido ou conexão com a realidade. Ao invés disso poderíamos propor um rap com as seguintes frases: Pedro pedreiro é preto/ Por isso pegam no pé dele/ ser preto e pedreiro é motivo de preconceito. Nesse caso estão presentes as sílabas complexas e a problematização em torno do racismo, por exemplo.

Essa linguagem e problematização são facilmente entendidas pelas crianças e jovens, uma vez que, eles lidam com situações diversas em seu cotidiano. Embora o enfoque centre-se em nas crianças em idade de letramento pode ser expandido aos jovens entre 5º e 6º ano. Dayrell compartilha uma experiência com a juventude num projeto realizado com o viés da inculturação. Em suas palavras:

O nosso contato com essxs jovens e com as suas trajetórias sociais deixa muito claro o aparente óbvio, mas que muitas vezes parece passar despercebido: elxs são seres humanos, amam, sofrem, divertem-se, pensam a respeito de suas condições e de suas experiências de vida, posicionam-se diante dela, possuem desejos e propostas de melhoria de vida. Acreditamos que é nesse processo que cada um/a delxs vai se construindo e sendo construídx como sujeito, como ser singular que se apropria do social, transformando-o em representações, aspirações e práticas, que são interpretadas e dão sentido aos seus mundos e às relações que mantêm. (DAYRELL, 2016, p.255).

É somente por meio desse diálogo e tal contato que há possibilidade dessa interação. A educação deve sempre primar por isso. O diálogo e a adaptação dos conteúdos à realidade dos educandos. Sendo assim, pode-se pleitear uma proposta de educação libertária no sentido de emancipação e compromisso integral com o ser humano em seu caráter social, político, afetivo, existencial e econômico.

Além disso, a proposta é uma nova maneira de lidar com a palavra. Por vezes a forma de se introduzir a criança ao mundo da palavra escrita gera certas resistências que podem potencializar traumas, inclusive.

Partindo da premissa de Freire de que: “Alfabetização, portanto, é toda pedagogia: aprender a ler é aprender a dizer sua palavra. E a sua palavra humana imita a palavra divina: é criadora” (FREIRE, 1994, p.11).




A palavra pode ser improvisada ou planejada no momento da rima. Teperman comentando sobre a diferença dos improvisos das vaquejadas em relação ao rap sinaliza que a primeira é descrita em quadras de quatro versos. Já o rap não precisa disso, afirma o pesquisador: “No caso do rap, não faz sentido pensar no número de sílabas em cada verso porque a presença do beat permite um uso musical das pausas”. (TEPERMAN, 2011, p.84).

Podemos observar que além de uma problematização por meio de elementos que dialogam com a realidade o pode-se estimular a criatividade e o aumento do vocabulário dos educandos, uma vez que, a proposta orbita em torno de um alargamento no que diz respeito ao leque de palavras por eles conhecido.

Outro elemento que se destaca é o papel comunitário da abordagem. Uma vez que vários alunos serão chamados a criar suas rimas por meio das atividades propostas outros serão estimulados a assim fazê-lo também. Nesse sentido, a proposta contempla o objetivo socializante visando a interação dos vários alunos com o conteúdo e com a classe. Concomitantemente se pode pensar a realidade, problematizando-a.

É importante que os estudantes pensem em sua realidade e aprendam com e por meio dela, pois dessa maneira o conteúdo aproxima-se deles e não se torna algo alheio. Com essa aproximação visa-se o maior interesse pela educação e sua interação social de maneira completa.

Isso posto necessita-se pensar ainda numa alternativa remota, pois como a pandemia da COVID-19 acometeu o mundo é necessário que haja adaptação aos novos tempos e com isso se projete novas possibilidades de ações pedagógicas que respondam às demandas do tempo presente de forma, minimamente, satisfatória.

 Por meio então dessa intervenção lúdica pode-se trabalhar vários temas de viés transdisciplinar na alfabetização e letramento. Ocorre também que se apresenta outro desafio nos tempos de pandemia (COVID-19), que se constitui um entrave quando se pensa na aplicabilidade das atividades e jogos propostos. O ano de 2020 trouxe uma nova realidade no que diz respeito às aulas,

que tiveram que adaptar-se ao ensino remoto. Cursos de graduação e ensino técnico já adotavam essa modalidade, mas a educação básica não havia se deparado com essa realidade, por isso para muitos professores o ensino remoto apresentou-se como novidade.

Ao propor uma metodologia interativa e lúdica na alfabetização das crianças é necessário que haja interação e capacidade de mediação. Sendo assim, o professor que se dedica a tal atividade deve dispor de ferramentas necessária para essa execução. Ocorre que quando a atividade se faz de forma remota cabe aos responsáveis desempenhar tal tarefa.

Nesse sentido o bom uso da internet se faz necessário para que as atividades ocorram da maneira desejada. Mais uma habilidade a ser desenvolvida tanto pelo docente, quanto pela equipe escolar.

Importa ressaltar que uma boa edição e articulação dos vídeos e outros conteúdos interativos podem somar nessa tarefa de aulas remotas e promoção de atividades. Nesse caso, caberá ao professor saber explicar o passo-a-passo das atividades de forma didática, necessitando ainda que se adapte alguns materiais que não são facilmente encontrados pelos pais.

No caso de alguns jogos podem ser utilizados materiais recicláveis e utensílios do cotidiano das famílias. Dessa maneira pode-se pensar numa relação sustentável com o meio ambiente, por exemplo.

D’ANDREA, Tiarajú Pablo. A formação dos sujeitos periféricos: cultura e política na periferia de São Paulo. Tese. (tese de doutorado em sociologia). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo. p.287, 2013.

DAYRELL, Juarez. Por uma pedagogia das juventudes: experiências educativas do Observatório da juventude da UFMG. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2016.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.

PERCILIANO, Michele. No ritmo e na poesia: o rap e o hip hop como estratégia didática para o ensino de história da África e Cultura Afro-Brasileira. Koan: Revista de Educação e Complexidade. n.6, jun.2018, p.139-152.

TEPERMAN, Ricardo Indig. Tem que ter swing: batalhas de freestyle no metrô Santa Cruz. Dissertação (mestrado em sociologia), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo. p.274, 2011.

WEIHMÜLLER, Valentina Carranza; SIQUEIRA, Vera Helena Ferraz de, SILVA, Marcel Rezende. O hip hop como pedagogia das juventudes: encontro possível entre multiculturalismo crítico, a pedagogia social e a educação popular. Revista Iberoamericana de Educación. v.75, p.45-68.


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