Necropolítica do racismo: uma brevíssima introdução
Muito
influenciado pela questão do racismo estrutural de nossa sociedade e pela
adoção da necropolítica como
modo de ser do Estado minha inquietação é saber, de fato, como essa
configuração se dá em termos filosóficos.
Para tal me valho do referencial de Achille Mbembe para começar a pensar e pontuar essas inquietações. Em Necropolítica (2018) Mbembe faz um ensaio sobre a gênese do que denomina como necropolítica que, em síntese, significa: “governo da morte”, ou ainda, governo orientado para a morte. Nas páginas introdutórias o autor cita o seguinte: “Este ensaio pressupõe que a expressão máxima da soberania reside, em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer” (MBEMBE, 2018, p.5). A partir dessa afirmação Mbembe vai buscar fundamentos para sustentar sua tese.
Um dos autores que busca dialogar é o filósofo Hegel que, de acordo, como Mbembe defende que a morte é algo voluntário na relação do ser humano com o Estado. “Sob o paradigma hegeliano, a morte humana é essencialmente voluntária. “É o resultado de riscos conscientemente assumidos pelo sujeito. De acordo com Hegel nesses riscos o “animal” que constituí o ser natural do indivíduo é derrotado” (MBEMBE, 2018, p.11-12). Trata-se, portanto, do processo dialético que envolve o humano e seu espaço social. O risco da morte e sua acomodação no sistema passam a ser integrantes do processo civilizatório. Avançando na discussão Mbembe insere Bataille e faz a síntese com a teoria de Hegel.
“A vida além da utilidade, dez Bataille é o domínio da soberania. Sendo esse o caso, a morte é o ponto no qual destruição, supressão e sacrifício constituem um dispêndio tão irreversível e radical - e sem reservas - que já não podem ser determinados como negatividade. A morte é o próprio princípio do excesso - uma“antieconomia”. Daí a metáfora do luxo e do “caráter luxuoso da morte” (MBEMBE, 2018, p.14).
A soberania do Estado estaria ligada ao direito de arbitrar sobre a vida das pessoas. Quem não está de acordo com os paradigmas eleitos pelo Estado em sua constituição hegemônica projeta-se como inimigo e pode ser facilmente aniquilado, pois os sacrifícios são plenamente justificáveis quando se ameaça a ordem estabelecida por quem rege e sustenta a “máquina de Guerra” (Estado).
No Brasil dos tempos coloniais o Estado colocou os negros em condições de subalternidade, pois com a abolição da escravidão (oficial) os negros foram despejados de seus antigos lares e locais de trabalho sem direito a nada. A política oficial legou à morte aqueles que deram sua vida na manutenção e desenvolvimento da economia. Jessé de Souza descreve com maestria a situação do negro pós-abolição.
“Para o negro, sem oportunidade de competir com chances reais na nova ordem, restavam os interstícios do sistema social: a escória proletária, o ócio dissimulado ou a criminalidade fortuita ou permanente como forma de preservar a dignidade de “homem livre”. Ao perderem a posição de principal agente de trabalho, os negros perderam também qualquer possibilidade de classificação social. A ação concomitante de extinção das estratégias de acomodação do passado, que proporcionaram a negros e mulatos ocupações compensadoras e até nobilitantes, mostra o grau dramático para esse setor da nova configuração de vida econômica” (SOUZA, 2017, p.77).
Foi dessa forma que o negro foi tratado pela “Casa Grande” depois de três séculos de escravidão. O Estado colonial advogava em prol de uma política excludente e cerceadora de oportunidades. Isso foi ganhando conotações das mais dramáticas possíveis e chega aos tempos atuais como política de Estado, ou seja, a exclusão e morte de negros não configuram como algo “anormal”, pois há um ideário e histórico que justificam isso.
Na dinâmica social o exercício do poder vai sendo estruturado em torno de grupos que sustentam a matriz econômica. Por isso a eles é dado o “direito” de decidir e controlar os corpos. A discussão perpassa o viés antropológico e jurídico. Quais corpos viverão? Quais morrerão? Mbembe faz a seguinte colocação:
Operando com base em uma divisão entre os vivos e os mortos, tal poder se define em relação a um campo biológico do qual toma o controle e no qual se inscreve. Esse controle pressupõe a distribuição da espécie humana em grupos, a subdivisão da população em subgrupos e o estabelecimento de uma cesura biológica entre uns e outros. Isso é o que Foucault rotula com o termo (aparentemente familiar) “racismo”.(MBEMBE, 2018, p.17).
Racismo é a política da morte imperando sobre os corpos negros. Quando lhes foi vedado o direito de integra-se na lógica da economia pós-abolição o mecanismo racista se fez presente de uma maneira. Da mesma forma que quando se opta pela morte de vidas pobres e negras o racismo amplia sua ação e assume o caráter da necropolítica.
Mbembe conclui sobre o racismo da seguinte forma: “Com efeito, em termos foucaultianos, racismo é acima de tudo uma tecnologia destinada a permitir o exercício do biopoder, “este velho direito soberano de matar”. Na economia do biopoder, a função do racismo é regular a distribuição da morte e tornar possíveis as funções assassinas do Estado. Segundo Foucault, essa é “a condição para a aceitabilidade do fazer morrer” (MBEMBE, 2018, p.18).
Em Pele negra, máscaras brancas faz um
resgate de como o negro martinicano, uma ilha colonizada pela França, se viu na
relação colônia-metrópole. O autor chega a conclusão que o processo de
colonização possui profundidade e ramificações complexas influindo, inclusive,
na reestruturação do imaginário do dominado.
O processo de
desconstrução e negação do negro como ser – sendo relegado à categoria de objeto
do branco – faz com que este seja descrito a partir de sua objetificação. O racismo, via de regra, era descrito a partir
do dominador, ou seja, quem descrevia e analisava a história de dominação era o
“sujeito dominante” e não o dominado. A proposta de Fanon é uma inversão
epistemológica partindo do mundo do colonizado; do negro que é vítima do sistema
de dominação.
Ao pesquisar a imagem
do negro Fanon percebe que há no imaginário coletivo do colonizador a associação
do negro como ruim; mau; terror. As figuras do mau e do obscuro estão ligadas a
pessoa do negro. Essa construção, de certa maneira, legitimou a dominação e
exploração do homem branco em relação ao negro. Por isso Fanon pontou que o
racismo é um constructo social.
Vejamos:
“A inferiorização é o
correlato nativo da superiorização européia. Precisamos ter a coragem de dizer:
é o racista que cria o inferiorizado. Com essa conclusão, aproximamo-nos de
Sartre: “O judeu é um homem que os outros homens consideram judeu: eis a
verdade simples de onde se deve partir... É o anti-semita que faz o judeu”
(FANON, 2008, p.90).
Uma vez que o racismo é
socialmente construído ele precisa ser desconstruído e superado para que as
desigualdades; preconceitos e entraves possam ser problematizados e superados.
Nesse sentido Fanon entende que isso necessita ser feito por meio da
consciência.
Como psicanalista Fanon
defende a seguinte metodologia no que tange ao diagnóstico e tomada de posição
do paciente em relação ao processo de racismo pelo qual passou. Vejamos:
“1. Meu paciente sofre
de um complexo de inferioridade. Sua estrutura psíquica corre o risco de se
desmantelar. É preciso protegê-lo e, pouco a pouco, libertá-lo desse desejo
inconsciente.
2. Se ele se encontra a tal ponto submerso
pelo desejo de ser branco, é que vive em uma sociedade que torna possível seu
complexo de inferioridade, em uma sociedade cuja consistência depende da
manutenção desse complexo, em uma sociedade que afirma a superioridade de uma
raça; é na medida exata em que esta sociedade lhe causa dificuldades que ele é
colocado em uma situação neurótica” (FANON, 2008, p.90).
Quando fala em libertar
o paciente do inconsciente Fanon entende que deve despertar o paciente em
relação a sua condição de explorado e para isso é necessário conscientizá-lo de
sua posição e papel na sociedade. Por isso parte para a ação e postura prática
em relação ao sistema.
“Surge, então, a
necessidade de uma ação conjunta sobre o indivíduo e sobre o grupo. Enquanto
psicanalista, devo ajudar meu cliente a conscientizar seu inconsciente, a não
mais tentar um embranquecimento alucinatório, mas sim a agir no sentido de uma
mudança das estruturas sociais” (FANON, 2008, p.90).
A proposta de Fanon é
de reeditar o inconsciente para a partir dele propor a prática de superação da
realidade de opressão por meio do conhecimento do processo de dominação; da
estrutura constituinte do negro e suas novas maneiras de existir por meio de sua
consciência liberta.
A reedição do
inconsciente é tratada por Fanon como uma espécie de missão, pois entende o
negro como subsumido em relação a dominação do branco e concebe que o primeiro
passo para a libertação é a afirmação de consciência em relação à realidade
dominadora.
Em outras palavras, o
negro não deve mais ser colocado diante deste dilema: branquear ou desaparecer,
ele deve poder tomar consciência de uma nova possibilidade de existir; ou
ainda, se a sociedade lhe cria dificuldades por causa de sua cor, se encontro
em seus sonhos a expressão de um desejo inconsciente de mudar de cor, meu
objetivo não será dissuadi-lo, aconselhando-o a “manter as distâncias”; ao
contrário, meu objetivo será, uma vez esclarecidas as causas, torná-lo capaz de
escolher a ação (ou a passividade) a respeito da verdadeira origem do conflito,
isto é, as estruturas sociais.(FANON, 2008, p.90-91).
Para muitos esse reivindicar a partir da condição de negro é exagero, pois postulam que todas as pessoas são iguais e devem ser tratadas como tais. Ao afirma-se negro e distinguir-se dos demais estaria-se pleiteando privilégios e descumprindo princípios básicos do Estado democrático de direito.
Um dos pilares do direito é o princípio da isonomia que, em suma, é tratar os desiguais à medida de sua desigualdade. O processo histórico e político brasileiro atrasou os negros e seus descendentes impossibilitando-os de concorrer com os demais de maneira justa. Não obstante, o imaginário do negro ainda é ligado à escravidão e à marginalidade. A cultura negra com seus cultos, ritos e tradições tem sido demonizada ao longo dos anos.
O que quer o negro? Essa é a pergunta de Fanon em Pele negra, máscaras brancas. O negro quer a reparação e retratação histórica para que não se viva mais sob o estigma da escravidão e que a partir daí se possa, de fato, propor a igualdade de condições e direito, pois para o negro tudo tem sido mais difícil.
FANON, Frantz. Pele
negra máscaras brancas. EDUFBA, Salvador, 2008.
MBEMBE, Achille.
Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. São
Paulo: n-1 edições, 2018.
SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava-Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017.
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