Máquinas sociais e o desejo em "Capitalismo e Esquizofrenia"


Deleuze e Guattari dedicam-se a escrever uma obra com o objetivo de dupla crítica: ao Édipo do capitalismo e à edipianização da psicanálise. O texto ficou conhecido como Capitalismo e Esquizofrenia tendo em o Anti-Édipo seu início e em Mil Platôs sua continuação. Ao todo são mais de mil páginas por isso é considerada uma das maiores obras filosóficas do século XX.
Para os autores a humanidade é concebida na dinâmica de máquinas produtoras de desejos
Há tão somente máquinas em toda parte, e sem qualquer metáfora: máquinas de máquinas, com seus acoplamentos, suas conexões. Uma máquina-órgão é conectada a uma máquina-fonte: esta emite um fluxo que a outra corta. O seio é uma máquina que produz leite, e a boca, uma má- quina acoplada a ela. A boca do anoréxico hesita entre uma má- quina de comer, uma máquina anal, uma máquina de falar, uma máquina de respirar (crise de asma) (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p.11).
Como são leitores de Nietzsche concebem a produção como pulsão, ou seja, o ser humano por meio de suas potências produtivas cria e recriar novas formas de vida, sistemas e mecanismo de existência. Entretanto, nas diversas formações sociais constatam que os desejos são sempre recalcados e projetados de modo a serem contidos pelo que chamam de códigos.
Em O Anti-Édipo fazem uma releitura da história mundial por meio das máquinas (selvagem, bárbara e capitalista) em analogia ao método de Marx em modos de produção (asiático, feudal e capitalista). Em cada uma dessas formações o desejo é recalcado de uma maneira.
Na máquina bárbara o desejo é codificado no corpo das pessoas. Essas passam a pertencer a terra e por meio da inscrição corporal e ritos de iniciação tendem a manter a produção de forma latente. Nesse caso as alianças familiares (laterais) faz com que os indivíduos mantenham-se focados na produção e reprodução da vida por meio do sistema de dívidas e créditos que são gerados no seio dessas próprias tradições.
A filiação é administrativa e hierárquica, mas a aliança é política e econômica, e exprime o poder enquanto este não se confunde com a administração. Filiação e aliança são como que as duas formas de um capital primitivo, o capital fixo ou estoque filiativo e o capital circulante ou blocos móveis de dívidas (DELEUZE; GUATTARI, p.195, 2010).
Por codificar o desejo essa máquina não admite que haja incesto e nem que haja individualização do sofrimento. Isso contribui para manutenção de sua coesão e perpetuação de seu modelo. Já as alianças e modelo de filiação impedem a emergência do Estado como absoluto e controlador dos fluxos. Outro fator que contribui para repelir a formação do Estado é a guerra.
A inscrição e a pertença ao chamado “corpo pleno da terra” faz com que haja grupos pertencentes a determinadas localidades. Esses grupos são heterogêneos e enfrentam-se em determinadas ocasiões. Por meio da guerra empreendida por elas a formação do Estado é adiada.
Os autores se valem de uma afirmação de Pierre Clastres para reforçar a posição que a guerra é o que repele a formação do Estado. Como podemos observar:
Clastres considera que, nas sociedades primitivas, a guerra é o mecanismo mais seguro contra a formação do Estado: é que a guerra mantém a dispersão e a segmentaridade dos grupos, e o guerreiro é ele mesmo tomado num processo de acumulação de suas façanhas que o conduz a uma solidão e a uma morte prestigiosas, porém sem poder (DELEUZE; GATTARI, 1997, p.14).
Mais adiante afirmam:
A guerra primitiva não produz o Estado, tampouco dele deriva. E assim como ela não se explica pelo Estado, tampouco se explica pela troca: longe de derivar da troca, mesmo para sancionar seu fracasso, a guerra é aquilo que limita as trocas, que as mantém no marco das "alianças", que as impede de tornar-se um fator de Estado ou fazer com que os grupos se fusionem. (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.15).
A fusão mencionada acima só ocorrerá na próxima formação: despótica bárbara na qual o déspota estabelecerá a ligação direta com a divindade e se colocará como absoluto. Essa formação é caracterizada pela sobrecodificação dos fluxos do desejo, assim como, das alianças.  Os autores irão definir o déspota como “paranoico”. Ele passa a representar o controle dos fluxos e trabalha pela sua capturação em favor da máquina despótica.

O modelo de aliança e filiação vai ser alterado. A partir do momento da instauração do Estado a criação de um corpo burocrático também se fará necessária. Nesse sentido, escribas, juristas, cobradores de impostos, etc. trabalharão em prol desse Estado. A paranoia também se aplica no sentido de capturar toda a forma de excedente.  As antigas alianças são ressignificadas; não deixam de existir, no entanto, passam a trabalhar em prol do Estado.
E esta nova aliança não é nem um tratado nem um contrato. Porque o que é suprimido não é o antigo regime das alianças laterais e das filiações extensas, mas tão somente o seu caráter determinante. Elas subsistem mais ou menos modificadas, mais ou menos arranjadas pelo grande paranoico, pois elas fornecem a matéria da mais-valia. É disto que advém o caráter específico da produção asiática: as comunidades rurais autóctones subsistem, continuam a produzir, a inscrever, a consumir; e o Estado só tem de ocupar-se com elas. As engrenagens da máquina de linhagem territorial subsistem, mas são apenas peças trabalhadoras da máquina estatal (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 259).
O Estado passa a exercer sua ação como grande mecanismo de captura. Ele faz com que a produção seja direcionada para a manutenção e sua máquina burocrática e alimente sua estrutura. A família é submetida à produção econômica e é um dos sustentáculos do déspota, paranoico. Ele visa controlar tudo. Nada pode lhe escapar. Ele cria excedentes e faz com que haja confluência dos fluxos no surgimento de uma nova máquina: a máquina capitalista.
A máquina capitalista possui vários diferenciais em relação às anteriores. Um deles é a relação das máquinas de produção com os sistemas (socius). Nos modelos anteriores os corpos eram marcados e posteriormente sobrecodificados. Já no sistema capitalista o capital conseguiu acoplar as máquinas ao corpo pleno do socius, sendo o ser humano apenas mais uma peça na engrenagem da máquina.
É empreendida uma descodificação generalizada a inscrição deixa de ter um corpo e passa a correr pelo socius (sistema) e passa a perpassar as diversas dimensões da vida humana. Quem promove a filiação passa a ser o capital. Esse, portanto, não é tangível; palpável. Por isso sua fluidez.
Curiosamente a maquina capitalista é ambígua, pois ao mesmo tempo em que descodifica precisa axiomatizar (capturar) os fluxos. Em síntese ela promove necessidades e pelo próprio sistema cria meios de supri-las. Ela passa a preencher de forma imanente o socius, ampliando internamente os limites do capitalismo sem esgota-lo em suas possibilidades, sempre inovando suas maneiras de representação social.
 Nessa dinâmica o Estado capitalista passa atuar como Urstaat imanente, isto é, como mecanismo axiomatizador dos fluxos desterritorializados. Urstaat esse que sempre rondou as diversas formações sociais e serve como modelo de captura de fluxos. Conforme podemos notar.
O primeiro pólo de captura será chamado de imperial ou despótico. Ele corresponde à formação asiática de Marx. A arqueologia o descobre por toda a parte, frequentemente recoberto pelo esquecimento, no horizonte de todos os sistemas ou Estados, não somente na Ásia, mas na África, na América, na Grécia, em Roma. Urstaat imemorial, desde o neolítico, e talvez mesmo antes. Segundo a descrição marxista: um aparelho de Estado se erige sobre as comunidades agrícolas primitivas, que têm já códigos de linhagem- territoriais; mas ele os sobrecodifica, submete-os ao poder de um imperador déspota, proprietário público único e transcendente, mestre do excedente ou do estoque, organizador dos grandes trabalhos (sobretrabalho), fonte de funções públicas e de burocracia. (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.101).
De acordo com os autores há sempre a tendência de “ressuscitar” o Urstaat, pois ele simboliza o “arquétipo” da captura dos fluxos. Nas diversas formações houve essa tendência, inclusive no capitalismo.
O Estado é desejo que passa da cabeça do déspota ao coração dos súditos, e da lei intelectual a todo o sistema físico que dela se desprende ou se liberta. Desejo do Estado, a mais fantástica máquina de repressão é ainda desejo, sujeito que deseja e objeto de desejo. Desejo — é esta a operação que consiste sempre em reinsuflar o Urstaat original no novo estado de coisas, em torná-lo tanto quanto possível imanente ao novo sistema, interior a este (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 294).
De forma cabal o capitalismo opera por meio do Urstaat – quando lhe convém – para manter a produção funcionando e o mecanismo maquínico operando de forma a manter suas estruturas.
Os Estados modernos da terceira era restauram bem o império mais absoluto, nova "megamáquina", seja qual for a novidade ou a atualidade da forma tornada imanente, realizando uma axiomática que funciona por servidão maquínica tanto quanto por sujeição social. O capitalismo acordou o Urstaat, e lhe dá novas forças. (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 141).
Nesse sentido tanto capitalismo, quando socialismo operam em favor do sistema capitalista. Eis uma das críticas, mas contundentes de O Anti-Édipo, pois para os autores o modelo que captura fluxos e opera em favor da produção é igualmente capitalista. Nesse sentido, a gênese do Estado está em contar os fluxos do desejo e regulá-los de forma a os incluir no sistema. Nada pode escapar.

Referências:

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Editora 34: São Paulo, 2010.

__________. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Editora 34: São Paulo, 1997.

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