Uma liturgia da sobrevivência
Nesses tempos de quarentena tenho ficado mais recluso e
dedicado meu tempo a velhos projetos que nunca tinha terminado. Um deles era
escrever alguma coisa sobre rap e teologia. Já em 2011 eu havia encorajado um
amigo a fazer seu TCC sobre “a teologia do rap”. Eu tentaria ajudar na medida
do possível. Os anos se passaram e fiquei muito empolgado quando em 2018 foi
lançado o livro “Sobrevivendo do Inferno” pela Companhia das Letras. O meu
exemplar eu comprei na lendária Livraria Cultura, na avenida Paulista.
Há tempos eu venho sendo assombrado por minhas memórias que me interpelam a cerca do que ainda não fiz e deveria ter feito. Eu ouço Racionais desde o começo de sua carreira. Conheço todos seus discos. Fui a shows do grupo. Discuto e defendo a importância do rap e sua mensagem, mas nunca tinha escrito nada a respeito. Encorajei pessoas a fazê-lo, mas eu mesmo nunca tinha feito.
Há tempos eu venho sendo assombrado por minhas memórias que me interpelam a cerca do que ainda não fiz e deveria ter feito. Eu ouço Racionais desde o começo de sua carreira. Conheço todos seus discos. Fui a shows do grupo. Discuto e defendo a importância do rap e sua mensagem, mas nunca tinha escrito nada a respeito. Encorajei pessoas a fazê-lo, mas eu mesmo nunca tinha feito.
Esses dias de difícil sobrevivência (pandemia do COVID-19) tenho me dedicado a repensar sobre rap e
teologia. Dessa maneira, me deparei com alguns textos de Henrique Takahashi ( TCC - trabalho de conclusão de curso e dissertação de mestrado), que
se dedicam dissertar sobre os Racionais Mc´s. Seu mestrado tem um título sugestivo e
provocador: Evangelho segundo os Racionais Mc´s. A análise é precisa e
coerente. Não sei se consigo acrescentar muito a esse escrito, mas tentarei
fazê-lo de forma a não ser somente uma cópia do que Takahashi já fez.
Algumas palavras sobre a estética do álbum. A capa do álbum
em si mesma já é sugestiva, pois sugere a figura de uma Bíblia. Na parte interna como conteúdo:a
(pregação). O itinerário possui uma organização semelhante à liturgia de um culto pentecostal - embora com tom religioso mescla armas, munição, pessoas aparentemente de luto com a mensagem de conscientização e solidariedade entre negros da pariferia.
- Jorge de Capadócia
- Gênesis(intro)
- Capítulo 4, versículo 3
- Tô ouvindo alguém me chamar
- Rapaz comum
- ... 80
- Diário de um detento
- Periferia é periferia (em qualquer lugar)
- Qual mentira vou acreditar
- Mágico de Oz
- Fórmula mágica da paz
- Salve
Pensando na lógica litúrgica a ideia de uma mensagem se faz
da seguinte maneira. Inicia-se com uma oração (Jorge da Capadócia). Em seguida
faz-se a introdução (Gênesis) explicando como se deu o afastamento do ser
humano (preto periférico) de seu objetivo inicial. De certa forma é uma
genealogia da “moral da periferia”. A faixa 3, Capítulo 4, versículo 3, talvez seja o ponto auge,
correspondente à pregação (fazendo analogia de um culto pentecostal). Em
seguida aparecem os testemunhos e opções de conduta (mal/bem). Por fim Fórmula mágica da
paz e Salve fecham. No Salve Mano Brown cita Jesus como um homem negro, pobre e
de periferia, numa perfeita inculturação da mensagem cristã ao contexto.
Cada música merecia uma análise minuciosa e extensa. Mas, no geral, trata-se de um álbum que denuncia a situação do negro e pobre das periferias do Brasil e seus dilemas. Não se trata somente da periferia de São Paulo. Os dilemas são iguais nas periferias Brasil afora. Em comum o mesmo legado: exclusão e marginalidade. Não somente negros vivem esse dilema. Brancos pobres fazem parte do mesmo ethos, da mesma maneira de ser e se portar no mundo.
O rap do grupo adquire caráter mobilizador quando conclama a uma nova saída. Assim como as mensagens religiosas de cunho político de homens como Moisés, Malcom X e Luther King fomentaram a tomada de consciência e crítica do sistema. O rap do grupo por meio do álbum Sobrevivendo no Inferno tenta reconstruir essa narrativa buscando a conexão da realidade dos excluídos com a mensagem libertária por meio de uma narrativa teológica.
Cada música merecia uma análise minuciosa e extensa. Mas, no geral, trata-se de um álbum que denuncia a situação do negro e pobre das periferias do Brasil e seus dilemas. Não se trata somente da periferia de São Paulo. Os dilemas são iguais nas periferias Brasil afora. Em comum o mesmo legado: exclusão e marginalidade. Não somente negros vivem esse dilema. Brancos pobres fazem parte do mesmo ethos, da mesma maneira de ser e se portar no mundo.
O rap do grupo adquire caráter mobilizador quando conclama a uma nova saída. Assim como as mensagens religiosas de cunho político de homens como Moisés, Malcom X e Luther King fomentaram a tomada de consciência e crítica do sistema. O rap do grupo por meio do álbum Sobrevivendo no Inferno tenta reconstruir essa narrativa buscando a conexão da realidade dos excluídos com a mensagem libertária por meio de uma narrativa teológica.
Takahashi assim descreve a narrativa teológica envolta na
obra:
“A narrativa político-religiosa dos Racionais Mc´s
relacionaria as discursividades de Moisés, Jesus, Malcolm X e Martin Luther
King enquanto uma genealogia de um saber teológico negro-periférico. Contudo, é
importante explicar que se trata da noção de um saber teológico e não teologia
no sentido estrito, visto que a noção de teologia pressupõe uma moralidade
prescritiva, da mesma forma que os cultos religiosos institucionalizados, que
seguem suas escrituras teológicas, como Bíblia e o Corão. No caso dos Racionais
Mc´s não há utilização de escrituras, sua narrativa descreve tão somente
caminhos para o ouvinte seguir; chega a induzir, mas nunca a prescrever”
(TAKAHASHI, 2014, p.54).
Para Takahashi a teologia da obra se expressa pela maneira com que ela se apresenta: a crítica partindo da exterioridade em comparação aos centros de poder. Os Racionais colocam-se na mesma posição de Moisés,
Jesus, Malcolm e Luther King. Essas pessoas tiveram em comum o enfrentamento
com figuras opressoras de seu tempo e foram responsáveis pela conscientização e
mobilização dos explorados, conclamando-os a uma espécie de revolução e tomada
de posição por meio de suas pregações e atuações.
Teologicamente é pela palavra (lógos) que se faz a interação com o mundo e a construção de pontes para novas realidades.
O verbo é dabar,
palavra criadora. Do ex-nihilo Deus
pode fazer uma nova realidade. Assim acontece com a palavra quando empregada de
maneira correta e de forma eficaz. A palavra com inspiração divina possui esse mesmo poder. O rap assume, então, essa missão de trazer uma mensagem de redenção por meio da nova consciência de fala; lugar; percepção da vida àqueles que se identificam e se reconhecem como negados do sistema.
A pregação dos Racionais Mc´s é uma mensagem de denúncia,
conscientização e chamada para um novo êxodo. Entretanto, não se trata de um
êxodo geográfico, mas uma mensagem espiritual com alto poder revolucionário. E
quem pode fazer isso? O rap.
A realidade de opressão continua a mesma; o lugar geográfico também; as condições sociais e oportunidades da mesma forma. O que muda, então? A percepção. O rap torna-se a chave hermenêutica de interpretação da realidade. A partir disso a busca por um ideal de vida e oportunidades melhores é feita de forma consciente.
Cotidianamente as pessoas enfrentam seus dilemas e dificilmente sabem suas origens. O trabalho e as inúmeras responsabilidades sociais fazem com que a abstração e problematização sejam sublimadas e
não exercidas da maneira que deveriam ser. Quando se entende as razões pelas quais se é legado à marginalidade há mais propriedade para se reivindicar o lugar social. O rap possibilita essa redenção.
A realidade de opressão continua a mesma; o lugar geográfico também; as condições sociais e oportunidades da mesma forma. O que muda, então? A percepção. O rap torna-se a chave hermenêutica de interpretação da realidade. A partir disso a busca por um ideal de vida e oportunidades melhores é feita de forma consciente.
Cotidianamente as pessoas enfrentam seus dilemas e dificilmente sabem suas origens. O trabalho e as inúmeras responsabilidades sociais fazem com que a abstração e problematização sejam sublimadas e
não exercidas da maneira que deveriam ser. Quando se entende as razões pelas quais se é legado à marginalidade há mais propriedade para se reivindicar o lugar social. O rap possibilita essa redenção.
A pregação e oferta de redenção
aparecem na música Capítulo 4, versículo 3. Nela consta a decodificação do
mundo periférico e a possibilidade de redenção por meio do rap. Vejamos como
ela é analisada por Takahashi.
"Assim a música que se constitui como uma
expressão de combate entre os “manos” e “sistema”, logo teologicamente, a
resolução desse conflito seria uma ruptura desse “sistema” que é produtora da
maldade. Assim, além da leitura política da hegemonia como é tida comumente,
esta será lida simultaneamente, a partir de concepções morais e éticas como:
“bem” e “mal”, “certo” e “errado”, “justo” e “injusto” oriundas dessa
perspectiva teológica. A constituição dessa teologia é de matriz cristã, isto
porque, além de nos anos noventa ocorrer um crescimento considerável de
praticantes das igrejas pentecostais/neopentecostais "(TAKAHASHI, 2012, p.15).
A letra propõe vários paralelos.
Na leitura dos Racionais, o que corrompe o homem preto de periferia é se
entregar ao crime e/ou se portar como branco e romper com o ethos da periferia. Por isso a mensagem
do rap é importante, pois ela mantém uma mística de ligar-se ao sagrado
numa espécie de redenção e ressignificação da vida. Isso fica
explícito no final da letra:
“Permaneço vivo prossigo a mística
Vinte e sete anos contrariando a estatística
Seu comercial de TV não me engana
Eu não preciso de status nem fama
Seu carro e sua grana já não me seduz
E nem a sua puta de olhos azuis
Eu sou um rapaz latino-americano
Apoioado por mais de cinquenta mil manos
Efeito colateral que seu sistema fez
Racionais, capítulo 4, versículo3”.
(RACIONAIS MC´S, 2018, p.56).
(RACIONAIS MC´S, 2018, p.56).
Essa parte contrasta com a anterior que menciona um "mano" negro que de deixou seduzir pela ideologia dos "branquinhos do shopping". Nesse caso, o negro "perdeu-se" e passou tornou-se usuário de crack.
Ih, mano outra vida, outro pique
Só mina de elite, balada vários drinque
Puta de butique, toda aquela porra
Sexo sem limite, Sodoma e Gomorra
Faz uns nove anos
Tem uns quinze dias atrás eu vi o mano
Cê tem que ver, pedindo cigarro pros tiozinho no ponto
Dente tudo zuado, bolso sem nenhum conto
O cara cheira mal, as tia sente medo
Muito louco de sei lá o que... logo cedo
Agora não oferece mais perigo
Viciado, doente, fudido, inofensivo
A mensagem estimula às pessoas a permanecerem aos ideias da periferia e com os "pés no chão". Uma das frases marcantes nos shows dos Racionais é: "você sai da pariferia, mas a periferia não sai de você!". E assim segue-se o itinerário, ou melhor, a liturgia de como sobreviver no inferno.
Seguindo essa liturgia quem ouve e se identifica
com as letras pode chegar também às conclusões óbvias tais como: o estado não
contempla a necessidade dos pobres; o racismo é um problema estrutural; o
ideário burguês é uma ilusão que seduz muitos pobres; a periferia precisa lutar
por ela mesma e a mensagem de Jesus de Nazaré é maior que o cristianismo.
Esse foi um ensaio brevíssimo, que nem pode ser
chamado de ensaio. São apenas devaneios. Estava devendo algo sobre os
Racionais.
Referências
TAKAHASHI, H. Y. Capítulo 4, versículo 3: Uma
teologia dos Racionais Mc´s. 2012. Trabalho de Conclusão de Curso. São Carlos.
Universidade Federal de São Carlos.
___________. Evangelho Segundo Racionais Mc´s:
ressignificações religiosas, políticas e estético-musicais nas narrativas do
rap. 2014. Dissertação de mestrado. São Carlos. Universidade Federal de São
Carlos.
RACIONAIS MC´S. Sobrevivendo do inferno. São Paulo:
Companhia das Letras, 2018.
Excelente ensaio. Gostei muito!
ResponderExcluirEstado não contempla a necessidade dos pobres eu até diria que o estado nunca contemplou como deveria comtwmplar, a carne preta ainda é a mais barata do mercado; concordo plenamente contigo no sentido de que "o racismo é um problema estrutural; o ideário burguês é uma ilusão que seduz muitos pobres; a periferia precisa lutar por ela mesma e a mensagem de Jesus de Nazaré é maior que o cristianismo."