Itinerário de um profeta: ações e contradições



Henrique Takahashy em seu brilhante texto “O evangelho segundo os Racionais Mc´s” aborda a formação e atuação do grupo sob um olhar sociológico. Por diversas vezes faz analogia da atuação do grupo com passagens e personagens bíblicos.

De acordo com essa abordagem o grupo figuraria como um novo Israel frente ao Império egípcio, numa releitura do êxodo hebraico. A periferia, representada nas diversas letras, seria então o povo oprimido, como menciona Takahashy.

"As figuras dos egípcios e do Faraó são reatualizadas, numa perspectiva periférica, respectivamente, em “playboys” e “sistema”. Os playboys seriam figurados enquanto aqueles indivíduos pertencentes s classe social dos dominantes que oprimiriam o povo, da mesma forma que os egípcios oprimem os hebreus. O sistema seria a estrutura dominante e injusta que oprime e explora a classe popular, os moradores de periferia, de modo a deixa-los submissos e docilizados. Esse seu poder estrutural possui um teor absoluto e autoritário, tal como é conhecido o governo de faraó. Mesmo que o primeiro seja representado por uma estrutura despersonificada e o segundo por um poder absoluto, personalizado, ambos possuem a mesma função opressora" (TAKAHASHY, 2014, p.43).

Se os Racionais tipificam a periferia como um êxodo eles necessitam de um profeta. Quem, dentro dessa realidade, reuniria as características para liderar o povo rumo a nova realidade? Sem dúvidas o rap, mas não necessitaria de um personagem? Quem poderia ser esse? Mano Brown.

Pedro Paulo Soares Pereira, conhecido como Mano Brown é filho de Ana Soares Pereira. Nunca conheceu o pai. Foi criado na zona sul da cidade de São Paulo e desde muito jovem aprendeu a enfrentar as contradições da vida. Em suas letras faz questão de mencionar seu lado “guerreiro” e instinto de sobrevivência. A ausência da figura paterna forjou em Brown esse caráter de “lutar para sobreviver”. Indubitavelmente trata-se de uma questão psicanalítica, pois na ausência do Lyon alguém necessita fazer a castração do Édipo. Nesse caso, o sistema; os playboys e até mesmo a ausência do Lyon do triangulo edipiano são projeções para que o sujeito aja a rompa com suas contradições condicionantes.

A exemplo de Brown não encontramos registros nos relatos bíblicos da relevância da figura paterna na vida de Moisés. Sua mãe e sua irmã são colocadas como pessoas relevantes em sua biografia. Já o pai não possui relevância significativa digna de nota em sua vida. Moisés cresce no Egito adotado pela filha de Faraó e depois vai habitar na terra de Midiã e passa a ter Jetro como pai. Sua luta foi para libertar o povo preto hebreu na luta contra a escravidão do sistema opressor. Semelhante à luta de Brown.

A liderança de Moisés é inquestionável. De legislador à sanitarista. De líder revolucionário à profeta. Sob diversas análises ele é estudado e abordado. Entretanto, há contradições, sobretudo, no que tange a seu temperamento. Embora a Bíblia mencione que ele fosse um homem manso (Nm. 12,3) teve seus momentos de ira como se pode observar na descida do monte Sinai quando, ao ver que o povo fizera um bezerro de ouro, quebrou as tábuas da lei (Ex. 32,15).

Também há o fatídico caso em que Javé pede para Moisés falar com a rocha que a mesma jorraria água. Moisés se ira e bate na rocha. Esse seria um dos motivos de ele não adentrar na terra prometida (Nm. 20, 7-8). Algumas dentre as várias contradições. Afinal, os profetas têm suas contradições.  
Se os Racionais precisam de um profeta Mano Brown preenche essa lacuna como maestria. Não foge às contradições inerentes a qualquer ser humano. No início do trabalho do grupo, Brown se recusava a falar com a grande mídia e, até mesmo a se posicionar politicamente, entretanto com o passar dos anos foi flexibilizando o pensamento e abrindo margem para as contradições e críticas como menciona Rogério Silva (2012).

Talvez o marco categórico tenha sido a entrevista concedida à Revista Rolling Stone. Para alguém que se dizia contra o sistema aparecer na capa de uma revista “do sistema” seria uma contradição. Mas quem não tem suas contradições?

"Na chamada da Revista Rolling Stone, percebemos como a figura de Mano Brown é contraditória: ―Mano Brown se diz mudado, apesar de também afirmar que continua o mesmo (RRS, 2009). Explicando para o repórter o caminho a ser percorrido para chegar ao ponto de encontro para a realização da entrevista, o rapper descreve, de forma inconsciente, o seu próprio trajeto ideológico e político nesses 30 anos de hip hop: "Ô zica, a fita é a seguinte: entra na praça  à direita, depois pega a primeira à esquerda e, por último, à direita de novo. Tem de fazer um 'Z'. Vamos decidir a parada hoje. Qualquer coisa, me liga” (RRS, 2009). Em outras palavras, poderíamos afirmar que na juventude o rapper adotou posições radicais próximas à direita; na idade adulta aproximou-se, ideológico e politicamente, da esquerda; no entanto, tem manifestado, nos últimos anos, que caminha, dentro de uma tendência mundial, para o centro " (SILVA, 2002, p.148-149).

Possivelmente não seja uma questão de contradição, mas de amadurecimento e revisão de posições. Quem não tem as suas? Brown, Moisés, Malcolm? O caminho do amadurecimento por vezes pode se mostrar contraditório. A questão é que Brown sinaliza para uma proposta libertária por meio do rap.  

A problematização que analise de conjuntura que faz em relação ao sistema são precisas.
Em várias de suas letras os Racionais indicam um modo de ser que é revolucionário: ter humildade, pensar no próximo; não esquecer as origens da periferia essas são algumas questões postas. O preto precisa ter seu lugar ao sol. Sempre. Mas é preciso ter humildade... por que o “mundo é diferente da ponte pra cá”.



SILVA, R.S. A periferia pede passagem: trajetória social e intelectual de Mano Brown.  2012. Tese de doutorado em sociologia. Campinas. Universidade Estadual de Campinas.

 TAKAHASHI. H.Y Evangelho Segundo Racionais Mc´s: ressignificações religiosas, políticas e estético-musicais nas narrativas do rap. 2014. Dissertação de mestrado. São Carlos. Universidade Federal de São Carlos.

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