Bacurau


Bacurau é um filme intrigrantemente forte. Essa é a melhor definição que consigo dar à obra que é, além de tudo, um mergulho na identidade do povo brasileiro.  O filme é rico em detalhes, simbolismo e possui uma mensagem de resistência e luta.

O nome Bacurau é de um pássaro noturno, que não gosta de ser incomodado. Em uma das falas do filme pergunta-se: “quem nasce em Bacurau é o que? A resposta é: gente.” Nada mais brilhante. Gente. Gente do Brasil.

Os símbolos do filme exibem algumas curiosidades. A cidade se encontra no interior do nordeste e não consta no mapa. Ao mesmo tempo as pessoas são conectadas com a internet. Possuem tablets; celulares e se comunicam por rádios transmissores.

A população, embora do interior, parece muito bem informada. Nas casas os livros e pequenas bibliotecas são colocados ao fundo das cenas.

Bárbara Colen e Sônia Braga são duas médicas da comunidade. Bárbara interpreta Teresa, uma médica que foi criada na cidade, mas ficou muito tempo fora. Ao retornar precisa fazer o processo de “iniciação” novamente. O que consiste isso? Uma erva que é ingerida pelas pessoas da comunidade num simbolismo de semelhante ao utilizado em “Matrix”, quando Morfeu oferece a Neo as pílulas. 

A cidade é um exemplo de resistência. Tony Júnior é o prefeito que tenta comprar os votos da população oferecendo comida fora do prazo de validade, remédios (dopantes) e um caminhão de livros (que trata como entulho, jogando-os na porta da escola). A cidade rejeita o prefeito, que contrata um grupo de mercenários estadunidenses para matar a população.

Há muitos simbolismos nessa atitude. Um deles é a venda da força de trabalho nacional ao capital estrangeiro. O segundo é que um casal de mercenários acredita ser “branco” ao estilo estadunidense. Eles são tidos com desdéns pelos mercenários, que zombam dos brasileiros. Uma crítica à burguesia nacional que acredita não ser brasileira.

As mortes começam na cidade que, à princípio, demora a entender o que está acontecendo, mas se organiza por meio da liderança de Lunga e Acácio. O primeiro interpretado por Silvero Pereira e o segundo por Thomas Aquino. Lunga estava foragido, habitando numa fortaleza distante da cidade. Acácio é um pistoleiro conhecido e estimado pela população.

A cidade possui um museu que evoca a ligação do lugar com o cangaço - ao que parece é o orgulho da cidade. Há fotos e armas nele. Nenhum visitante havia adentrado nele até o momento do confronto. Quando um dos mercenários entra, já em meio ao confronto, é apenas para ser assassinado.

Outro lugar que é simbólico é a escola. A resistência e ataque final vem da escola. Lunga mata um inimigo no museu. As armas utilizadas são do museu (em grande parte). A comunidade resiste e sobrevive.

Análises teológicas

Assistindo ao filme a imagem que me vem a mente é a retratada por Norman Gotwald em “As tribos de Yahweh”. Como o Israel tribal resistiu às potencias mundiais de seu tempo? Pela resistência. Embora muitos teólogos questionem essa posição defendendo que as passagens do Israel tribal sejam somente propagandas e retroprojeções o símbolo se mantém em ambos os casos.

O símbolo da resistência seja por meio de propaganda; seja por meio da história é o principal elemento. Nesse sentido, a premissa do Schwantes necessita ser destacada. Para este autor a memória do antigo Israel liga-se ao tribalismo e a resistência à monarquia despótica e imperial.

O problema político e teológico de Israel se explica, em grande medida, pelo seu envolvimento com a monarquia e a submissão aos demais reinos estrangeiros. Bacurau faz o contraponto de um pequeno vilarejo, aos moldes do Israel tribal na resistência.

Os heróis de Bacuaru são heróis marginais. Teologicamente isso conecta-se com o ideário profético. Em alguns escritos os hebreus são identificados como “hapiru”, rebeldes e pessoas marginais, comparando-se à sociedade da época. Em Bacurau isso aparece de maneira inequívoca quando Acácio e Lunga organizam a resistência, ainda que armada.

O museu em Bacurau remete à resistência do cangaço. Na história de Israel a memória do Êxodo é parte fundante da identidade. Em comum? A memória da resistência. O Êxodo “mudou” Israel de patamar diante não só do Egito, mas das demais potencias palestinas.

A memória da resistência perpassa o Êxodo e chega a monarquia tendo na figura de Davi um resistente aos desmandos de Saul. Davi retoma o ideal rebelde dos “hapiru´s” e reúne-se com um bando de cangaceiros para subsistir e subverte com isso sua condição de adido. Depois dessa longa história sagra-se rei e redentor da nação.

E a escola?

As escolas judaicas talmúdicas eram por excelência escolas de ensino e resistência, pois Israel foi devastada por vários impérios e sobreviveu a partir de uma memória de resistência e reconstrução.
É emblemático Bacurau terminar o conflito numa escola. Escola remete ao ensino e resistência.

Quem nasce em Bacurau é gente. Quem resiste também.

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