O poço - El hoyo - uma breve análise


E aí? O recado foi dado à administração ou não? Essa é a pergunta final que se faz ao assistir “o poço” (el hoyo – título original). O filme trata de um futuro distópico numa prisão vertical em que são confinados dois presos por andar.

A maioria das pessoas presas está ali por algum delito cometido a exceção talvez seja Goreng, o personagem principal. Ele se voluntariou a estar na prisão por dois motivos: parar de fumar e ler o livro “Dom Quixote de la mancha”. Uma das chaves de leitura do filme possivelmente pode estar ligada à obra de Miguel de Cervantes. Cada preso tem direito de levar um objeto para dentro da prisão. As pessoas levaram de tudo: dinheiro, prancha de surf, cachorro, faca. Goreng de Dom Quixote - ele queria lutar contra estruturas invisíveis? Um mensageiro de novos tempos?


Goreng acorda no 48º andar e tem como companheiro de cela, Trimagasi, um velho que já estava confinado há alguns meses. Uma vez por dia descia uma plataforma com comida começando do primeiro andar (com um verdadeiro banquete) e descendo até o nível mais baixo, o 333º andar (uma alusão ao número da besta do Apocalipse?). As pessoas deveriam comer somente o necessário sem que sobrasse nada. Se isso ocorresse a temperatura do andar ou subia ou diminuía.

O interessante é pensar que na entrada cada pessoa era inquirida sobre seu prato predileto. Ele era incluído no banquete. A lógica natural é: se cada um comesse o que pediu daria para todo mundo comer, mas não é isso que ocorre. Já depois do 50º andar quase nada sobrava.

O filma caminha na dialética sobrevivência e solidariedade. As pessoas que estão confinadas lutam para sobreviver. E cada mês se acorda em um andar. Sendo assim, uma pessoa que, por exemplo, está nos níveis superiores num mês pode estar num nível bem inferior no mês seguinte. Foi o que aconteceu com Goreng. Já no segundo mês acordou a baixo do centésimo andar. Foi amarrado por seu companheiro, que por conhecer a sistema começou a mutilá-lo para comer sua carne e sobreviver.

A metáfora da vida se apresenta nessa representação. Em determinados momentos as pessoas preferem mutilar as outras e até mesmo praticar o canibalismo, simbólico, psíquico e emocional, a serem solidárias em superar as dificuldades. Essa é outra mensagem corrente no filme, mas a solidariedade é capaz de quebrar o sistema. Goreng assume essa tarefa quase que messiânica em conscientizar as pessoas sobre tal relação.

Outro ponto intrigante é que mesmo sendo um sistema rotativo de “classes” as pessoas não se solidarizam. A dupla que esteve no 50º andar e subiu para o 8º, por exemplo, não fazia questão alguma de se solidarizar com quem está no 9º ou 10º andar. Se isso ocorresse o sistema poderia ser “quebrado”, mas prefere-se manter a lógica do egoísmo, que acaba por manter o sistema tal como se apresenta.

Quando Goreng está para ser morto surge uma mulher que todo dia descia em busca de sua filha. Ela salva Goreng da morte. Goreng é informado que não podem ter crianças na prisão e que a mulher certamente está alucinada e criou uma filha fictícia para dar sentido a sua existência naquele local. Goreng dá vasão a seus impulsos na luta pela sobrevivência mata e come Trimagasi.

No mês seguinte amanhece em outro andar e tem com companheiro Baharat, que quer a todo custo subir de nível. Os dois chegam a um consenso:só se pode subir ou subverter o sistema enviando uma mensagem para a administração. Qual seria essa mensagem? Fazer com que um prato voltasse intacto pela plataforma de comida. Eles, então, resolvem descer até o último nível e subir novamente até o primeiro. No meio dessa empreitada são feridos, lutam, enfrentam desafios, mas chegam até o nível 333, o último nível lá visualizam a menina (ou só Goreng visualiza?), que a mulher tanto procurava.

Alguns críticos afirmam que somente Goreng visualizou a menina não sendo essa vista por Baharat. Outros dizem que a mãe todos os dias descia até o nível 333 para alimentar a filha, numa clara alusão ao desafio da mulher em sobreviver em criar seus filhos numa sociedade de consumo e competição.
A menina é uma miragem? Para alguns, sim. Para outros, não. Baharat interpreta a chagada ao fim do poço como “a mensagem” final dada à administração. Enquanto Goreng insiste em subir e levar a mensagem à administração Baharat insiste dizendo: a mensagem fala por si mesma.

Qual é a mensagem? A solidariedade é a única coisa capaz de vencer o sistema. Se cada um consumir e viver com responsabilidade utilizando somente o que é necessário para si a manutenção do coletivo se fará.


Há uma crítica ao excedente. Do excedente é que se forma a desigualdade. O filme possui várias mensagens. Como teólogo faço alusão a algumas passagens bíblicas. Primeiro. Contra quem é a luta daquelas pessoas? Contra uma estrutura invisível. O apóstolo Paulo em sua epístola aos Efésios diz que nossa luta é contra estruturas invisíveis – principados produtores da ideologia romana? –; a comida diária sem excedente faz referencia ao maná que o povo de Israel comia no deserto durante sua ida para Canaã. Não se podia ter excedente e cada dia o povo era alimentado. Se cada um comer somente o necessário todos comem; Goreng é uma espécie de messias, pois morre para mudar uma estrutura. Essa mensagem também fica para quem faz essa leitura teológica.

O filme possui um leque de interpretação variado. É intrigante e reflexivo. Essas são apenas algumas possibilidades de leitura. Talvez tenham outras, mas para quem não assistiu é um convite nesses tempos de reclusão.

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