Profetismo em Israel


Um dia desses uma pessoa me perguntou o que eu achava dos profetas. Nunca, até então, me tinha ocorrido a ideia de escrever algo sobre o tema, ainda que em forma de verbete, mas me senti impulsionado por essa dúvida a registrar – ainda que de forma sucinta – o que entendo sobre o assunto.

No geral, as pessoas têm a impressão de que profecia tem relação direta e indireta com adivinhação, presságio ou coisa parecida. Muita gente costuma chamar de profeta quem faz previsões sobre o futuro e de profecia catástrofes, mas a profecia bíblica pouco – ou nada – tem relação com isso.

Se tomarmos a classificação clássica da profecia a data mais precisa é o século IX. Seus dois expoentes são Elias e Eliseu. A linha que liga movimentos extáticos e espirituais do livro de I Samuel a profecia do Antigo Testamento é descartada por Von Rad e Fohrer, por exemplo. Para Von Rad: “Outrora admitia-se que o profetismo se havia desenvolvido em linha reta desde os grupos extáticos de I Sm 10:5ss até Isaías e Jeremias, passando por Samuel e Elias; mas reconheceu-se já há muito que isso era uma simplificação injustificável” ( VON RAD, 1974, p. 10). Já para Fohrer a profecia encontrada a partir de Elias “[...] é um fenômeno único, um movimento religioso novo e distinto e uma abordagem de vida que foi de imensa importância para história do javismo e para além dele”. (FOHRER, 2006, p.290). Em consonância com os autores situamos a profecia como movimento de retomada ao javismo[1]

Nos primórdios da religião de Israel algumas funções haviam sido definidas de maneira imprecisas. O caso Natã é um exemplo. Por vezes era chamado de nâbi’(profeta) [ I Sm 22:5; II Sm 24:11] e outras era chamado de hozéh (vidente)[II Sm 24:11].

Não partiremos do pressuposto de que experiências extáticas e a vocação profética são semelhantes. A profecia possui características próprias de anúncio, denúncia e proclamação da vontade divina sobre determinadas situações. Nesse sentido, não se pode entender as experiências de Nm 11:26 e 1 Sm 10:10 como experiências proféticas clássicas. Essa categoria se enquadra como visionários de uma religião popular. Não se pode fazer ilação dessa categoria com os profetas, pois estes últimos condenavam, sobretudo, a monarquia e exortavam o povo a volta ao tribalismo.



A religião de Israel precisa ser vista por meio de um prisma histórico que contemple sua evolução. Nesse sentido, os “proto-profetas” nada mais são do que movimentos que ganharam amadurecimento com o desenrolar da história religiosa de Israel. Havia fusão de dois elementos: denúncia e visão, mas ao longo do tempo isso foi sendo depurado a e profecia passou a ser identificada com características próprias, como bem pontua Fohrer.

“A presença, no antigo Israel, de ambas as formas de profecia no antigo Oriente Médio é demonstrada por uma nota de 1 Sm 9.9: “Aquele que agora é chamado de profeta [nabi] antigamente era chamado de vidente”. Isso sugere que os israelitas, originalmente nômades, trouxeram consigo para a instituição do vidente como representada pelos patriarcas no período anterior ao javismo (2,5), mas encontraram a instituição do nabi na Palestina e a assumiram [...]. A profecia do Antigo Testamento não é, certamente, a mera mistura ou continuação das duas formas originais; ela transformou aquilo que tomou por empréstimo e preservou em si algo de único e diferente. Isso aconteceu sob influencia do javismo, que deu radical contribuição aos elementos existentes – tanto ao desenvolvimento da profecia como ao restante da esfera religiosa” (FOHRER, 2006, p.206.).

A palavra profeta é nâbi’ ligada ao verbo proclamar. Também pode ser ligada ao chamamento por uma divindade para anunciar ou proclamar a vontade divina para seu povo; seus seguidores.

Os profetas clássicos atuavam geralmente por meio de palavras e visões. Eventualmente ocorriam algumas encenações denominadas pelos estudiosos como proféticas para denunciar e simbolizar situações envolvendo circunstancias corriqueiras e a vontade divina. Jeremias por exemplo, é um profeta de utilizava-se desse recurso com certa frequência.

A profecia clássica começa com Elias. Há de se perguntar o motivo. Milton Schwantes é categórico em responder: “a profecia é a expressão maior da força do povo, do tribalismo” (SCHWANTES, 2008, p.35). O estudioso liga o movimento profético a realidade social do povo em confronto com a vontade divina. Para ele o ideal divino para o povo de Israel era o tribalismo, uma vez que, a monarquia e as alianças com impérios estrangeiros eram contrários aos designíos divinos, de modo que, os profetas eram vocacionados para serem arautos de Javé contra a opressão política, social e espiritual.

Outrossim, há que se fazer algumas ponderações quando se trata dos profetas e suas atuações. No mundo antigo religião e política eram elementos indissociáveis. Consequentemente a aliança religiosa implicava numa aliança política e vice-versa. Tomemos como exemplo a época de Elias. O culto a Baal e a Javé no período do rei Acabe, além da aliança política, incutia um sincretismo religioso no povo; alienava direitos (1 Rs 21;2) e fazia o povo perecer.

“[...] a novidade radical de Elias é que ele julga inadmissível a coexistência, e ainda pior a interpenetração das duas formas de culto, enquanto seus contemporâneos se acomodavam muito bem a isto; é a razão pela qual o narrador concentra todo o seu relato sobre a resposta à questão posta pelo profeta. Quem deu a resposta? Em todo o caso não o povo [...] mas o próprio Javé” (VON RAD, 1974, p.21).

A resposta é interpretada como uma volta às origens do tribalismo. Nesse sentido há conexão direta da profecia com a terra, a política, a religião e a espiritualidade. Talvez seja por isso que Von Rad nega que as experiências extáticas anteriores ao período clássico sejam tidas como movimento profético, pois estas não continham as características das reivindicações relacionadas ao projeto político-social de Javé a seu povo.

Contra o imperialismo e pregando a volta dos valores tribais os profetas são contumazes em suas palavras e atuações. Sem dúvidas a tradição do reino do norte é que mais se destaca e a que tem os mais conhecidos profetas, como salienta Schwantes:

“A maioria destes profetas é do norte. É parte do grande movimento israelita de oposição ao reinado. No Sul, nestes tempos, quase não há profecia (menciona-se Samaías, 1 Reis 12, 21-24). No sul começa a aparecer outro tipo de organização ou grupo social e político que, mais tarde, se tornará mais e mais importante em Judá: trata-se de “o povo da terra” (SCHWANTES, 2008, p,35).

O movimento profético, nesse sentido, não pode estar ligado a qualquer experiência extática ou ainda a adivinhações e previsões futuras. A profecia clássica em Israel serve a dois propósitos: condenar os desmandos da monarquia e conclamar o povo a voltar-se para o ideal tribal. Sendo assim, pode-se observar que o apelo profético se faz em conexão com o cotidiano, isto é, “o chão da vida”.

Teologicamente a profecia é caracterizada como movimento social de denúncia de extravagâncias e injustiças contra o povo e proclamação da justiça de Deus por meio dos decretos firmados por Moisés, mas esquecidos pelo povo durante as alianças politicas feitas com potencias imperialistas em diversos períodos da história de Israel.

Referindo-se ao século VIII e analisando a profecia clássica Schwantes salienta que:

“ A profecia é parte desse movimento social com força no interior tribal, ,mais radical que o “povo da terra” (veja Jeremias 1,14). Também o ao norte temos esse fenômeno. A tirania de Jeroboão II (783-43 a.C.) e de seu filho Zacarias, que só permaneceu seis meses no poder, foi derrubada por Salum (743), que só pôde se manter um mês no palácio, contudo, parece ter recebido apoio das aldeias (2 Rs 15,16!) (SCHWANTES, 2008, p.42).

Schwantes deixa transparecer em seu texto outro elemento característico da profecia: a forte relação com as demandas populares. Quem dava sustentação popular ao profeta era o povo sofredor. Quando o profeta profetizava sempre tinha como aporte a relação com os pobres e expropriados. Geralmente as palavras eram proferidas contra reis e sacerdotes, quando a exortação era ao povo alertava-se para o perigo de se corromper com os ideais imperialistas.

“A profecia é, antes de tudo, palavra de Deus. É Javé que cria a profecia. Os profetas sempre se entenderam como “mensageiros”, como hermeneutas da presença de Deus em seu povo. Esse Deus os fez analisar a situação e ameaçar os poderosos em Judá e Israel. Esta centralidade que a palavra de Deus tem na profecia não a torna ‘mágica’, como se as análises e as ameaças de algum modo miraculoso cairiam do céu. Não! Cada profeta teve que se esforçar junto a suas comunidades e ao povo dos pobres para entender sua realidade” (SCHWANTES, 2008, p.47).

Sendo assim podemos concluir que o profetismo clássico em Israel relaciona-se com a história, política e espiritualidade do povo; seu conteúdo é de denuncia e anuncio dos desejos de Javé para seu povo e há forte conexão com a vontade popular para seu exercício.

Referencias:
FOHRER, G. História da religião de Israel. São Paulo: Paulus, 2006.
SCHWANTES. M. Breve história de Israel. São Leopoldo: Oikos, 2008.
VON RAD, G. Teologia do Antigo Testamento. Vol II. São Paulo: ASTE, 1974.



[1] Por javismo entende-se a religião monoteísta de Israel tendo Javé como único Deus. (VON RAD, 1974).

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