Coringa - um olhar esquizoanalítico


“O esquizofrênico situa-se no limite do capitalismo: é a tendência desenvolvida deste, o subproduto, o proletário e o anjo exterminador” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p.54).




Gostei muito do filme do Coringa que resolvi dessa vez tratar o filme por meio de uma olhar esquizoanalítico.

A melhor definição de esquizoanálise é a seguinte: filosofia alternativa ao sistema capitalista que valoriza a “loucura” produtiva como maneira de resistir e fugir dos padrões da sociedade de mercado, visando expandir seus limites e provocar rupturas nos moldes normativos da sociedade.

Arthur Fleck começa o filme como um esquizofrênico dopado. Ele serve ao sistema. Por isso não oferece nenhuma ameaça. Apesar de não ser o exemplo de normatividade; possui uma vida dentro do controle do capital. Trabalha; cumpre horário; assiste TV; toma seus remédios controlados e segue sua vida.

A situação começa virar quando um gatilho dispara na mente de Arthur e seus fluxos passam a ser descodificados (ou voltar a ser descodificados). Os fluxos eram contidos ou retidos pelas drogas que o dopavam, mas quando ficou sem as mesmas passou a dar vazão a seus desejos e é nessa hora que o sistema passa a temê-lo.

O próprio sistema foi quem descodificou os fluxos do desejo de Arthur. Aliás, o sistema capitalista tem como característica descodificar os fluxos, ou seja, desterritorializar os sentidos e significados para cooptá-los posteriormente com o intuito de controla-los e lucrar com isso.

“É que o capitalismo, como vimos, é efetivamente o limite de toda sociedade, uma vez que opera a descodificação dos fluxos que as outras formações sociais codificavam e sobrecodificavam”. (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p.326).

Descodificar, nesse sentido, é romper com a normalidade inaugurando novas maneiras e formas de ser e conceber a realidade. O sistema capitalista sobrevive das anomalias. Faz delas meio para lucrar, ganhar, girar dinheiro, controle e poder no sistema. Por isso as poucas alternativas que surgem ao seu domínio são rapidamente trazidas para o sistema ou repelidas.

Mas o esquizofrênico possui algo que as pessoas “normais” não possuem. Ele consegue encontrar meios de escapar e provocar mudanças e alterações nos meios sociais. Tudo por que se encontra no devir. Está em movimento contínuo. É inquieto e busca sempre novas maneiras de se reinventar.

Não é essa a forma de ser de Arthur?

Mesmo diante do sistema e dopado o esquizofrênico faz uma espécie de “jogo” que lhe dão a capacidade de flutuar dentro do sistema. Como destacam os filósofos:

“Ora o esquizofrênico se impacienta e pede que o deixem tranquilo; ora ele entra no jogo, e até provoca variações, pronto para reintroduzir seus próprios ajustes no modelo [...].” (DELEUZE, GUATTARI, 2010, p.27-28).

Ele faz isso por que força os limites internos do próprio sistema, pois este sabe que a ameaça maior que pode sofrer é essa: a descodificação dos códigos e fluxos de maneira conjunta e tão potente que não consiga axiomatizá-las.

Numa perspectiva esquizoanalítica essa situação é chamada de axiomática, que é a cooptação de tudo o que foge ao controle do sistema capitalista para seu mercado e meio de circulação. Arthur, quando foi diagnosticado, teve que se adaptar à normalidade sendo dopado e tendo que produzir para o sistema, mas depois que assumiu seu modelo alternativo de vida rompendo com a normalidade, forçou os limites do sistema.

Nesse sentido o filme cumpre um papel fundamental quando se utiliza da figura de um palhaço (esquizofrênico) para ser ele a mola propulsora da mudança. Por que? Porque ele é o que consegue escapar às formas de normatização social.

“[...]pode-se dizer que a esquizofrenia é o limite exterior do próprio capitalismo, ou o termo da sua mais profunda tendência, mas que o capitalismo só funciona com a condição de inibir essa tendência, ou de repelir e deslocar esse limite substituindo-o pelos seus próprios limites relativos imanentes que não para de reproduzir numa escala ampliada.” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p.326)

O filme retrata outras coisas sintomáticas. Uma delas é que em certa medida há muita gente que foi “esquizofrenizada” pelo sistema. Essas pessoas, num limite extremo, tendem a descodificar seus fluxos de maneira coletiva. Será que a máquina capitalista teria condições de axiomatizar tudo? Eis a questão.

A revolução provocada pelo palhaço sinaliza para outra coisa. A revolução e ruptura com o sistema capitalista não tem rosto. Não deve ser personalizada. O corpo carrega dentro de si o parasita que irá destrí-lo, diz a máxima. Se o sistema não tem rosto; não é mensurável a revolução idem. Por que são todos palhaços? Porque são todos entes descodificados.

E assim as coisas vão rumando para um corpo sem órgãos...

O anti-Édipo: capitalismo e esquizifrenia. São Paulo: editora 34, 2010.

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