Müntzer, um camponês em busca de justiça


Para compreender a postura teológica de Thomas Müntzer; o desdobramento que ela teve e as consequências teológicas e políticas na história, sobretudo, dos camponeses é necessário identificar suas origens e as circunstâncias que permitiram o desenvolvimento de sua teologia (assim como sua pessoa). Aliás, mais do que uma teologia Müntzer sinalizou para uma práxis cristã revolucionária.
Não podemos deixar de mencionar alguns dados biográficos do reformador dos camponeses. Vamos a eles. Müntzer nasceu por volta do ano de 1489, na cidade de Stolberg, na região conhecida como Saxônia. Seus dados biográficos são escassos. Ernst Bloch dedica nada mais do que um parágrafo para tratar da infância de nosso personagem histórico. Por ser curto e preciso pode ser reproduzido na íntegra.
Desde o princípio, tudo foi turvo ao seu redor.
Quase em abandono cresceu o sombrio moço. Filho único de uma família humilde, Müntzer nasceu em Stolberg em 1490. O pai o perdeu jovem, e sua mão recebeu muito mau trato, a pretexto de indigência, tentara expulsar da cidade. Se dizia que o pai acabou na forca, vítima da arbitrariedade do conde (BLOCH, 1968, p.18).
Talvez a falta de informações e até mesmo a imprecisão em torno das mesmas gera dubiedade de interpretações. Contrariando a tese de Bloch de que Müntzer tenha vindo de origem humilde com limitações financeiras Martin Dreher num famoso artigo situa nosso reformador entre a burguesia. Como podemos observar:
Müntzer nasceu, por volta de 1490, em Stolberg, na região do Harz, na atual República Democrática Alemã. Sua família fazia parte da burguesia, financeiramente bem situada. Pouco sabemos a respeito de seus estudos em Leipzig (1506) e em Frankfurt an der Oder (1512). Pouco sabemos também a respeito de sua atividade, após a interrupção de seus estudos, iniciados em Leipzig. Após alguns semestres de estudo, Müntzer abandonou os estudos em Leipzig para assumir a função de colaborador do ministério eclesiástico e funções de mestre-escola. Aqui talvez tenha descoberto os vícios da vida eclesiástica de então (DREHER, 1990, p.196-197).
Ambos os autores são sucintos na descrição da biografia de Müntzer, sobretudo, no tocante a sua infância e adolescência. Essa aparente contradição em situá-lo como pobre ou pertencente à burguesia denota a falta de fontes precisas. Qual seria o motivo por trás dessa escassez de dados? A suspeita é que o motivo seja por ser Thomas Müntzer uma persona non grata na história do pensamento cristão. Falar de Müntzer seria escrever uma história começando pela margem? Por baixo?
Tomando essa hipótese como verdadeira, Jim Sharpe nos auxilia a pensar nesse embróglio.Para esse historiador “ Tradicionalmente a história tem sido encarada, desde os tempos clássicos, como um relato feito pelos grandes” (SHARPE, 1992, p.40). Aos grandes sobram fontes oficiais. Já aos marginalizados fica a tentativa de uma reconstrução verossímil dos fatos, que muitas vezes é contestada.
Para o estudo de personagens que há pouco material “oficial” recorre-se por vezes a fontes não tão confiáveis. Sharpe enaltece os esforços dos historiadores que se lançam a estudar a história “de baixo”. De acordo com o historiador “[...] em seus esforços para estudar a história vista de baixo, os historiadores utilizaram outros tipos de documentação oficial ou semi-oficial” (SHARPE, 1992, p.50). Isso em alguns casos gera contradição em determinadas informações, que não chegam a comprometer a totalidade das investigações sobre determinados fatos e personagens históricos. Dessa maneira, a incongruência das informações demostra tão somente o desprezo pela história do personagem muito mais do que as contradições internas.
Não é nosso intuito fazer uma reconstrução minuciosa sobre a biografia de Müntzer. Mesmo por que o estudo, tanto de sua vida quanto de sua teologia, é marcado pela ausência de fontes como supracitamos. As demais fontes existentes, na maioria das vezes, são caracterizadas pela interpretação de Müntzer à luz da teologia luterana, conferindo-lhe atribuições que freqüentemente não condizem com a realidade de sua personalidade.
Sabemos que não há isenção na reconstrução de biografias e fatos. Mas é mister salientar que não se pode tomar algumas informações como verdades absolutas sem a devida confrontação como outros elementos paralelos da história. Nesse caso, procuraremos, quando possível, confrontar as informações para melhor conferi-las.
Passaremos a segunda fase da vida de Müntzer e que diz respeito às suas decisões determinantes que contribuirão em definitivo para sua atuação junto aos pobres e camponeses, uma vez que, a identificação com a causa e condição desse serão a base da atuação e teologia do pregador.
De acordo com Ernst Bloch a juventude do jovem Thomas Müntzer foi difícil. Desde muito novo conviveu com as dificuldades e injustiças que sua vida lhe legaram. Aos poucos o jovem aprendia lidar com as adversidades e se solidarizava com os que viviam ao ser redor. Aos poucos aflorava sua tendência solidária.
Ainda moço, conheceu, pois todas as amarguras do opróbio e da injustiça. Se fez silencioso, fechando-se em si mesmo. Não aceitava nada dos demais, por que estava suficiente disposto a sofrer com eles. Ao sentir a necessidade dos pobres, do povo simples, que se afundava, esfarrapado, embrutecendo-se empobrecido. E ainda havia outra coisa que lhe saia ao encontro desde fora a seu coração vigilante. Tempos de agitação se aproximavam, jovens por si, cheios de coisas desconhecidas; o país estava alerta, inquieto; como um adiantamento circulavam daqui para lá mensageiros e emissários e pregadores. Por outra parte, nos bosques vales de Harz alertavam ainda as doutrinas dos flagelantes, persistia a recordação de Santa Vehma (BLOCH, 1968, p.18).
A sensibilização e “mergulho interior” traduzido por Bloch como fechar-se em si mesmo fez com que Müntzer buscasse outras alternativas para satisfazer a necessidade de uma espiritualidade que respondesse algumas inquietações suas. Sendo assim, a leitura de místicos foi sua companhia e um dos “gatilhos” para sua atuação. Nas palavras de Dreher o momento pode ser definido da seguinte forma:
Desde 1519 Müntzer começa a ler João Tauler e Henrique Seuse. A leitura destas obras marcou-o profundamente. Nas obras destes místicos encontrou a afirmação, que o tornou extremamente feliz, de que Deus primeiro lança a todos os seus amigos na noite do desespero - assim como ele, Müntzer, o havia experimentado - antes de permitir que o seu sol brilhe sobre eles. Nestes místicos, Müntzer encontrou, ainda, a afirmação - que ainda mais felicidade lhe trouxe - de que o eterno Deus, sem meios exteriores, se revela palpavelmente aos seus no mais profundo da alma. No sentido mais profundo da palavra, o homem pode sentir Deus e ter certeza absoluta dele (DREHER, 1996, p.198).
Outras informações sobre Müntzer revelam que suas origens estão relacionadas aos crescentes grupos de mercadores que surgiam na sociedade européia do século XVI e com os mineradores que também se dedicavam à cunhagem de moedas. Ambas as categorias que desfrutavam de uma prosperidade econômica em ascensão e ansiavam por mais liberdade de comércio em seus territórios (LINDBERG, 2001). No tocante à sua formação acadêmica inclui-se os títulos de “Mestre em Artes” e “Bacharel em Sagrada Escritura”, obtidos através de seus estudos nas universidades de Leipzig, Frankfurt-an-der-Oder e Wittenberg (DREHER, 1990).
Assim como os demais reformadores, Müntzer também experimentou a decadência moral da Igreja de sua época, fato que o levou a identificar-se com o movimento reformador criado em torno da pessoa de Lutero. Devido as suas atuações como pregador itinerantes entre os pobres sua preocupação com a justiça social já tinha sido revelada antes da publicação das Noventa e Cinco Teses. Esta identificação com a causa luterana foi o que, inicialmente, norteou suas ações. Também data desse período 1519-1520 seu encontro com Martinho Lutero, quando foi designado por este para substituir o pregador humanista Sylvius Egranus, na cidade de Zwickau, por volta de 1520. Bloch narra assim o encontro:
Pelo ano novo de 1519, Müntzer esteve em Leipzig, onde é muito provável que conhecera a Lutero, quem naquele precioso momento disputava com Eck. Lutero ficou favoravelmente impressionado por Müntzer; esta, em contrapartida, cuja atitude ascética já era uniforme, não ganhou uma impressão favorável sobre Lutero. Como queria que fosse, o certo é que Lutero recomendou Müntzer para Zwickau, e em 1520, o capelão o deixou como pregador a este centro de indústria têxtil, muito avançado no aspecto econômico e contaminado desde muito tempo com a ideia dos exaltados (BLOCH, 1968, p.19 ).
Em Zwickau, Müntzer começa a conviver com os “profetas místicos” e aprofundar seu estudo sobre a teologia de John Tauler, místico alemão que afirmava a possibilidade de um relacionamento do ser humano para com Deus sem necessidade de qualquer espécie de mediação. A partir deste contato com os “profetas de Zwickau”, Müntzer desenvolve sua tese de que o conhecimento de Deus não pode ser transmitido por ensinamento humano, mas é fruto da experiência individual em face do sofrimento que nos torna semelhantes a Cristo (DREHER, 1990). Estas afirmações, aliadas à crítica de Müntzer às autoridades que permitiam a exploração social dos camponeses, começaram a distanciá-lo definitivamente de Lutero.
De acordo com Bayón a inclinação em favor dos camponeses tinha mais do que um componente sociológico. Sua ação decorria de uma leitura da Bíblia e vivencia de uma espiritualidade peculiar que foi forjada na concretude da práxis cotidiana.
Thomas Müntzer não é somente um dos ideólogos da “Guerra dos camponeses”, é também p iminigo interior da Reforma luterana na medida em que radicalizou algumas das direções do protestantismo no sentido alarmante para Calvino e Lutero, e que usualmente o fez passar como um dos pais do Anabatismo mais anticlerical, mais tendencioso na defesa do sacerdócio universal, e mais recalcitrante em sua negação da teologia da justificação somente pela fé. A certitudo salutis não se alcança unicamente mediante as operações insondáveis da Graça senão através, sobretudo, da mudança social que é o patentear, na prática, a palavra de Deus (BAYÓN, 2010, p.968 ).
Seu posicionamento em favor dos camponeses o levou a liderá-los em suas manifestações, inclusive no episódio da Revolta dos Camponeses. Essa revolta ficou conhecida e ganhou notoriedade, entre outras coisas, pela ruptura entre Müntzer e Lutero. Müntzer ficou ao lado dos camponeses enquanto Lutero se posicional em favor dos príncipes e dominadores.
Essa é mais uma das curiosidades da Reforma. Se Lutero posicionou-se ao lado de alguns senhores feudais e foi apoiado por eles. Não seria o indicativo de que a Reforma luterana tratou-se de um movimento burguês? Estaria Lutero sendo apoiado pelas elites? Nesse debate sabemos que há inúmeras controvérsias, mas levantamos esse questionamento para reflexão e questionamento.
Num artigo que visa resgatar a Revolta dos Camponeses na tradição do pensamento marxista João Henrique dos Santos define em dois parágrafos o movimento. Vejamos:
Em 1524, os camponeses alemães se revoltaram contra os senhores feudais, para os quais eram obrigados a trabalhar. A crise do sistema feudal havia modificado a situação da população rural. Liderada por Thomas Müntzer, um pastor da Saxônia, a revolta camponesa alastrou-se pelos campos e cidades da Alemanha.

Müntzer, em nome dos camponeses da Suábia, redigiu “Doze Artigos”, nos quais estes, lastreados na autoridade instituidora da Escritura, proclamavam que os camponeses nasceram livres e reivindicavam a livre escolha dos líderes espirituais, a abolição da servidão, o fim dos tributos religiosos, a diminuição dos impostos sobre a terra e a liberdade para caçar nas florestas pertencentes à nobreza. Omnia sunt communia (“Tudo é de todos”) era a síntese da pregação dos camponeses (DOS SANTOS, 2010, p.76).
Para o pesquisador Müntzer agiu como um vanguardista ao organizar as massas e defendê-las por meio de uma fundamentação bíblico-teológica. Fica nítido que o “profeta dos camponeses” escolhera e situara-se a partir de um lócus determinado: a causa camponesa. Camponeses era sinônimo de pobres, pois o sistema feudal (piramidal) reservava a quem estava no topo privilégios, enquanto quem era vassalo sofria a exploração.
Todo o empenho de Müntzer foi feito em decorrência de sua visão teológica. A ênfase num relacionamento direto e vertical entre Deus e o ser humano, caracterizado pela ação direta do Espírito Santo na alma humana, que segundo Müntzer era proporcionada pela consciência da miséria humana gerada pelo sofrimento, foi a principal característica do que se denominou de “espiritualismo” presente na em sua teologia. Este “espiritualismo”, que afirma a inutilidade da fé em sinais exteriores e a necessidade de se interpretar a Bíblia a partir do espírito, exerceu influência sobre todo desenvolvimento teológico müntzeriano, inclusive em sua maneira de conceber o valor da Bíblia para a fé (DREHER, 1990).             
Embora seja possível perceber aspectos na teologia de Thomas Müntzer que transcendem o contexto histórico vivido por ele, deve-se reconhecer que sua elaboração teológica tem profundas relações com a situação da sociedade européia, principalmente alemã, vigente no século XVI. Apesar do caráter notoriamente espiritualista de sua teologia e da forte influência mística em sua formação, Müntzer não pode ser considerado um teólogo “abstrato”, no sentido de não estar engajado nos dilemas presentes no seio de sua sociedade. Pelo contrário, sua teologia reflete a sua indignação por um quadro social bem específico, a saber, a exploração dos pobres, por parte dos príncipes e governantes, e a tentativa de legitimação desta situação, por parte dos teólogos e sacerdotes.
Esta indignação gerou em Müntzer a percepção de que a história da Igreja é marcada pela decadência e degeneração do propósito cristão original, preconizado na comunidade cristã primitiva, propósito este que consiste na igualdade entre todas as pessoas e na partilha comum de seus bens. De acordo com Müntzer, esta decadência já é prevista pelos textos bíblicos, que revelam uma constante luta entre a fé “verdadeira” e a fé “institucionalizada”, sendo que esta última prevaleceria em suas intenções de universalidade e dominação até o dia do juízo final.
A partir da compreensão de uma hermenêutica e historiografia das Igrejas corrompidas pela fé “institucionalizada”, na tentativa de legitimação da ordem social estabelecida, Müntzer faz uma profunda distinção entre a fé “verdadeira” e a fé “institucionaliza”, que constitui o principal fundamento de sua teologia e hermenêutica bíblica.

BAYÓN, Fernando. Guerra y Guerra. A modernidad apocaliptica de Thomaz Müntzer a León Tolstói.ARBOR Ciencia, Pensamiento y cultura.Córdoba, n.745, v.12ab, 2010.
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DREHER, Luís Henrique. Decadência da Cristandade e Hermenêutica na Teologia de Thomas Müntzer. Revista Eclesiástica Brasileira. Petrópolis: Vozes, Dez/1990, p. 858-95.
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FISCHER, Joachim. Lutero e Müntzer. Estudos Teológicos, São Leopoldo, v.29, n.1, p.7-15, 1989.
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