A verdade sufocada




Finalmente depois de muito tempo terminei a leitura de “A verdade sufocada” de Brilhante Ustra. O livro narra a saga da esquerda pela ótica da repressão. Uma vez que Ustra foi comandante do DOI-CODI de 1970 a 1974 e faz um resgate recompondo vários eventos históricos do período.

O livro é muito bem escrito, além de possuir muitos dados históricos que são registrados por meio de notícias de jornais, cartas e documentos aos quais o autor teve acesso.

Sua leitura exige fôlego, pois são quase 600 páginas em que são retratados vários momentos delicados pelos quais passou a política brasileira. Ustra é detalhista e procura checar as mínimas situações para relatá-las em sua obra.

Curioso é notar que não há menção dos processos intra-militares de forma satisfatória. O autor refuta apenas baseado em sua palavra quando é contraposto com argumentos de autores contemporâneos (Gorender e Gaspari, por exemplo).

Em muitos relatos o autor trata como mentirosas, por exemplo, as acusações que recebeu como torturador. Não se nota a mesma preocupação quando se trata dos grupos revolucionários ou terroristas como Ustra se refere. A estes foram legados os adjetivos desqualificantes.

Há ausência de arquivos e registros do DOI-CODI quando se trata de casos crucias que ganharam repercussão nacional. Não é utilizado o mesmo critério com documentos e notícias quando se refere às acusações da repressão (onde estão esses documentos?). Observa-se que quando se trata de justiçamentos e execuções por parte dos grupos revolucionários a tônica é uma e outra quando se trata de acusações contra a repressão.

Outra coisa que chama a atenção são as acusações de suicídio e os casos de acidentes por parte daqueles que foram presos. Até determinada parte do livro pode-se assentir com o fato de as pessoas terem sofrido acidente e optarem pelo suicídio, mas com o passar da leitura torna-se quase impossível acreditar que, de fato, tenha ocorrido tanto acidente e suicídios assim.

Isso leva a outra questão. A repressão não executou ninguém? Não houve nenhum erro por parte dos agentes? Vez por outra autores (que foram torturados, ou que foram ligados à luta armada) fazem menção dos excessos da repressão. Ustra não menciona isso em seu livro. A impressão que se tem é que havia um lado certo e outro completamente errado. Será?

Do começo ao fim a esquerda é demonizada. Terroristas, vagabundos, frustrados, revanchistas entre outros adjetivos são utilizados pelo autor. Para quem não conhece outras leituras que tratam do assunto e tende a observar a realidade de maneira unilateral o livro reforça a ideia de uma esquerda bandida e desajustada. Pessoas sem escrúpulos e irresponsáveis.

Em contrapartida Ustra é retratado como herói. Uma pessoa que ajudou a salvar o Brasil de sua maior e pior ameaça: a ditadura comunista.

Mas e os relatos de pessoas torturadas por ele? Será tudo mentira? Será que a equipe de Dom Evaristo Arns, que a todo tempo no livro é desqualificada, mentiu sobre os relatos?

Para quem conhece um pouco da mentalidade militar fica fácil entender a lógica de Ustra, pois é a lógica do positivismo que domina o pensamento militar brasileiro. A autoridade pertence à razão. Os argumentos, inclusive, de autores contrários a seu pensamento que - ocasionalmente utilizados são feitos para legitimar sua posição - e quando colocados em contraposição são refutados por sua palavra.

Outra coisa que salta aos olhos é o desdém por personagens históricos e comprometidos com as transformações sociais do Brasil. Como é o caso de Brizola. Em várias partes do livro Ustra desdenha da figura do estadista brasileiro. Com essas palavras finais retrata sua figura.

“Brizola falaeceu em 21 de junho de 2004. Foi enterrado no Jardim da Paz, em São Borja, Rio Grande do Sul, mesmo cemitério onde estão os túmulos dos ex-presidentes Getúlio Vargas e João Goulart.

Que descanse em paz o grande timoneiro das organizações subversivas que mais se assemelhavam ao "Exército de Brancaleone" (USTRA, p.153)”.

Ustra é parcial. Há livros como Batismo de Sangue de Frei Betto, Combate nas trevas de Gorender e A ditadura envergonha de Élio Gaspari que contestam a morte de Marighella como uma troca de tiros. Ficou, inclusive, reconhecido pelo Estado que foi um emboscada e que Marighella foi atingido sem dar um tiro. Ustra não se contenta e argumenta.

“Em 1996, um dossiê da comissão Especial de Mortos e Desaparecidos do Ministério da Justiça contestou a versão oficial de sua morte e homologou a decisão de conceder o pagamento de indenização à sua viúva, Clara Charf. Para a comissão, prevaleceu a justificativa de que Marighella teria sido abatido com um tiro no peito, à queima roupa.

Primeiro não é viável que o delegado Fleury perdesse a oportunidade de prender Marighella, para interrogá-lo, deixando que o executassem. Segundo, é fantasioso, que para confirmar a versão do tiroteio, tivessem assassinado a investigadora, o protético e ferido gravemente o delegado. Se Marighella foi morto à queima roupa, para que o tiroteio?” (USTRA, p.171).

Interessante essa seletividade no livro de Ustra. Quando lhe convém contesta o Estado, quando não a própria palavra basta. E assim ele tece sua trama colocando a esquerda como um câncer a ser extirpado e a ditadura como salvadora da pátria.

São inúmeros os casos em que Ustra faz isso. Chama atenção sua insistente negação em relação à tortura de Bete Mendes. Bete se elegeu deputada e redigiu uma carta contando que foi torturada por Ustra. Não só ela. São vários os casos de relatos de tortura. Como Ustra reagiu? Dizendo que era mentira e que tudo não passava de um conluio com a impressa para desmoralizá-lo

“Em que pese ter comprovado, exaustivamente, a farsa montada com a cooperação de deputada Bete Mendes, setores da imprensa continuaram dando a ela todo o crédito e publicando sua versão. As que apresentei sempre foram ignoradas”. (USTRA, p.460).

O livro tem um tom anti-comunista, e coloca o militarismo como defensor da ordem. Chama a atenção em fins da redação a figura do deputado Jair Bolsonaro como defensor da ditadura e lutador anti-comunista. Ao longo dos anos Bolsonaro vem tecendo um discurso anti-progressista. Passou a identificar o PT como inimigo e em 2018 esse é seu maior slogan de campanha.

Comentários

  1. Obrigado pela grandeza de analisar a obra. Em paralelo, cabe lembrar que ditaduras SE IMPÕEM (vide Fidel, Chavez e seus outros êmulos). O primeiro presidente do governo militar assumiu com o assentimento do Congresso Nacional, em Abril de 1964.
    Quanto à questão da tortura, algo que curiosamente, nunca vi debatido em lugar algum - os E.U.A., a Inglaterra, a Alemanha, a França - todos os países chamados "aliados" tinham como algo padronizado (não que eu apoie, eu acho algo horrível de existir) a chamada tortura. Mas não sei de militares dessas nações que tenham enfrentado tribunais de "resgate", nem sei de "torturados" desses países fazendo jus a indenizações vitalícias.
    Anti-comunista? Claro! O comunismo é belo na forma da letra, mas o cronista sabe muito bem a que preço fora erigido na extinta (só que não) U.R.S.S. - muito sangue, TORTURA e expurgos - quem leu "Arquipelago GULAG" (Alexander Soljenitsin) terá as impressões que fundamentam meu pensar.
    Mas, volto a frisar, parabéns, por ter se debruçado sobre a obra!

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    1. Li Soljenytsen quando contava com meus 15 anos. A princípio fiquei estarrecido. Hoje, Historiador (Bacharel pela UFSC), pude rever os ideais, grupos que apoiaram Alexander e o seu posterior asilo na meca do capitalismo mundial (EUA - Vide genocídios na Malásia, Golpes por toda a AL, Guantánamo, Demonização do Islamismo, Macarthismo e caça às bruxas em Salém - para saber que a base na qual se apoia a nação estadunidense é o medo que move seus cidadãos), e entender que ele apoiava os desmandos capitalistas. Então, por Ustra ser positivista, não me estranha que ele (ao que me constam não tenha doutorado), se arvore na condição de ser a própria referência.

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    2. Olá Pastor Porscrito. Então... isso fica muito mais nítido ao longo da leitura. Ele se coloca como autoridade histórica. Em muitas passagens conta somente com sua palavra para refutar acusações e elementos históricos. Além disso, utiliza elementos de maneira desconectada aos seus respectivos contextos. Ele cita Gorender e Gaspari quando esses criticam a esquerda, mas o faz totalmente fora de contexto. Enfim. Vale a pena ler o livro. Não pelo conteúdo, mas para poder refutar quem o defende com mais base. E não precisa de muito para isso. Argumentos frágeis e tendenciosos. Teoria da conspiração total. No final do livro Ustra faz uma homenagem a Bolsonaro, quando este ainda era deputado. Se tiver paciência dê uma lida. Abraço!

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    3. Pastor Proscrito... "demonização do islamismo"? Penso que a rotulação assim, sem se esclarecer o posicionamento, desmerece o esforço protetivo de uns, e ignora a obsessão dominadora de outros... sem embargo de outras ponderações sobre a resposta...
      Luis Fernando... a descontextualização me parece, salvo melhor juízo, algo amplamente utilizado pela esquerda, e nem por isso desconsiderado (vide o "nove dedos", dizendo ´quem mandou matar Mariele´...).
      Abraço, amigos debatedores...

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    4. Marquinhos Habib, parece-me que o pastor se refere à "guerra santa" entre Oriente e Ocidente. Cristãos x Muçulmanos, quando sabemos que o que está por trás é a briga pelo mercado.

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