Houve ou não houve golpe em 1964?
Nos últimos tempos tem-se ouvido
repetidas vezes uma narrativa de que não houve golpe militar em 1964 e que a
ditadura não existiu. Isso parece uma amnésia para não dizer “má fé” no sentido
sartreano ou mesmo no sentido popular.
Os anos 1950-1960 no Brasil
foram, realmente, muito conturbados. A própria vida e eleição de João Goulart
atestam isso. Jango era um homem pacífico e possuía poucas habilidades
políticas. Isso é o que atesta Marco Antônio Villa em uma das biografias do
ex-presidente.
Aliás “Jango (1945-1964): um
perfil” é um excelente livro. Villa explora as contradições interiores de Jango
e também as de seu governo. É uma boa tentativa de desmistificar uma imagem
construída de um político preparado e perspicaz. O historiador mostra a
inabilidade política e a personalidade volátil daquele que para muitos foi um
dos maiores presidentes brasileiros.
Não somente o governo de João
Goulart foi golpeado, mas a própria democracia. Pois a política nacional se viu
rendida frente aos interesses estrangeiros, que por meio de regimes
autoritários repetiram o feito em diversos países latino-americanos.
Afinal, houve ou não golpe?
Não somente houve “o golpe” como exportou-se o modelo do
golpe dado no Brasil para os demais países latino-americanos como no Chile, por
exemplo. René Dreifuss “1964: a conquista do Estado” demonstra com bastante
precisão a engenhosidade do golpe com tons gramscianos que se estabeleceu em
terras brasileiras.
Vamos aos fatos. A constituição à época indicava que em
caso de vacância da presidência o presidente da Câmara assumiria a cadeira.
Élio Gaspari em sua célebre trilogia diz o seguinte:
“Enquanto o presidente voava para o Rio Grande do Sul, Auro
Moura de Andrade, baseado “nos fatos do regimento”, declarou vaga a Presidência
da República e organizou uma cerimônia bizarra. No meio da madrugada,
acompanhado pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, rumou para o palácio
do Planalto. Levava consigo o deputado Ranieri Mazzilli, que, como presidente
da Câmara, seria o sucessor de Jango, caso a república ficasse acéfala.”
(GASPARI, 2002, p.111-112).
Alguns pontos:
1- O presidente se encontrava no Brasil;
2- A cerimônia foi feita às pressas na madrugada;
3- O STF assentiu à decisão golpista sem remeter-se à constituição (por pressão estadunidense?).
Há uma corrente que afirma ser o golpe um processo que
vinha sendo desenvolvido já na década de 1950 e que não se consumou devido ao
modelo desenvolvimentista adotado por JK que, em suma, favorecia os interesses
do capital. Jânio em seu governo confuso e Jango com suas propostas reformistas
preocuparam os setores conservadores brasileiros, que em conluio com militares
perpetraram o golpe.
No Brasil é comum se tramar golpes com as altas cúpulas.
Foi assim na proclamação da República; foi assim na “revolução de 30” e não
seria diferente em 1964. Havia uma rede de pessoas que, nos bastidores, já
disputava o poder. Brigava-se entre os militares para saber quem iria comandar
o que I, II e III exército, por exemplo, . Os políticos faziam o loteamento de
cargos e assim foi.
A situação de João Goulart se agravou depois de um comício
com discursos inflamados que prometiam mudança de rumos na política nacional.
Alguns setores conservadores insuflados por representantes de interesses
escusos fomentaram a saída de Jango. Ele recebeu a notícia. Foi chamado por
Brizola, então governador do Rio Grande do Sul, a resistir. Mas não o fez.
Villa atesta o seguinte sobre a cautela dos militares: “Era
claro o chamamento da derrubada do governo Goulart por meio de um golpe
militar, mas as Forças Armadas evitaram dar o primeiro passo, temerosas de um
novo fracasso, como em 1954, 1955 e 1961” (VILLA, 2004, p.145).
Villa parece ser simpático à tese de que o golpe já vinha
sendo tramado desde a década anterior a sua efetivação. Os interesses do
capital estrangeiros aliados ao atraso da burguesia nacional, que nunca se
preocupou em desenvolver o mercado interno do país investindo em uma política
nacionalista autônoma, assentiram à tomada de decisão por meio da ruptura
democrática.
Como agiu a elite? Dreifuss nos explica.
“A elite orgânica empresarial se fez defensora e porta-voz
dos pontos de vista moderados do centro, ampliando as perspectivas elitistas e
consumistas das classes médias e fomentando o temor às massas. Revigorava a
percepção solipisista das classes médias quanto à realidade social brasileira e
as influencias contra o sistema político populista” (DREIFUSS, 1981, p.230).
Dreifuss comenta que Glycon de Paiva, um dos fomentadores
do golpe defendeu a seguinte forma de ação:
“Em sua opinião, a ação politica tinha de ser sigilosa.
Suas recomendações envolviam a “criação de um caos econômico e político, o
fomento à insatisfação e profundo temor do comunismo por patrões e empregados,
o bloqueio de esforços da esquerda no Congresso, a organização de demonstrações
de massa e comícios e até mesmo atos de terrorismo necessário” ”(DREIFUSS,
1981, p.230).
Como se pode observar foi um golpe meticuloso, inclusive
com terror necessário para causar certa sensação de insegurança nacional e
colocar a população ao lado de um regime que “estabelecesse a ordem”.
Ao contrário do que muitos pensam. O golpe militar não
salvou o Brasil do comunismo. O governo Jango poderia ser qualquer outra coisa
menos comunista. No máximo se tratava de um governo populista com ênfase
reformista. Nada mais do que isso. Villa chega a colocar Jango como uma pessoal
inábil pouco afeiçoada aos traquejos políticos. Isso fez com que o mesmo não resistisse
ao golpe e migrasse rumo ao exílio para desespero de Leonel Brizola.
Carlos Alberto Brilhante Ustra em seu polêmico “A verdade
sufocada” descreve assim a tomada de poder por parte dos militares.
“As condições “objetivas e subjetivas” para a tomada do
poder, sem nenhuma dúvida, estavam presentes. Bastava somente um fato, político
ou não, para que as coisas se precipitassem. Era tudo questão de mais ou menos
dia.” (USTRA, 2007, p.68).
Óbvio que se tinha condições. Até por que se não as
tivessem poderiam ser criadas, como bem demonstrou Dreifuss quando investigou a
atuação da burguesia e de setores da elite no engendramento do golpe. Tudo
muito bem preparado com argumentos que até os dias de hoje seduzem os menos
informados.
As origens do golpe datam, na verdade, da crise do
populismo e da incapacidade política em lidar com as tais. A medida mais fácil
e simples foi abrir a economia e fazer com que fossem abatidos impostos e taxas
para investimentos estrangeiros. O que fazer?
A opção foi a mesma de outrora: submeter-se ao imperialismo. O que não
se esperava era que o regime recrudesceria de tal maneira e duraria duas
décadas. Foi um período bem difícil.
Os setores médios e fomentadores de opinião aderiram a
ideia de caos e logo a imprensa colocou-se contra Jango. Analisando o período
depois de passados vinte anos Ustra reconheceu o apoio, mas criticou a posição
tomada à época por parte da imprensa – estamos falando dos anos 1990 quando
Ustra redige sua obra – vejamos suas palavras:
“Essa imprensa que, em 1964, pedia a renúncia de Jango ou a
ação imediata da sociedade brasileira para por fim à desordem, hoje é tomada por
estranha amnésia, fruto, certamente, dos profissionais da esquerda, que povoam
e dominam suas reações” (USTRA, 2007, p.82).
Ustra em seu livro criou um fantasma chamado: “esquerda” com
que luta até as últimas páginas jurando fidelidade à constituição e defesa da
ordem, da família e dos valores tradicionais. Com essa narrativa foi tecido o
golpe militar de 1964 e até os dias de hoje encontra em pessoas sem o mínimo de
sensibilidade guarida para ecoar e disseminar mentiras e ocultar fatos.
Recomendo alguns livros para melhor conhecimento do
assunto:
DREIFUSS, R. 1964: a conquista do Estado: ação política,
poder e golpe de classe. Petrópolis: Vozes, 1981.
GASPARI, E. A ditadura envergonhada. São Paulo: Cia das
letras, 2002.
GORENDER, J. Combate nas trevas: a esquerda brasileira: das
ilusões perdidas à luta armada. São Paulo: Editora Ática, 1987.
USTRA, C.A. B. A verdade sufocada. Brasilia: Editora Ser,
2007.
VILLA, M.A.
Jango : um perfil (1945-1964). São Paulo: Edições Globo, 2004.
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