Marighella incomoda mesmo depois de morto.

O governo federal por meio da Ancine (Agência Nacional do Cinema) suspendeu a verba para a veiculação do filme: Marighella dirigido por Wagner Moura e tendo como ator Seu Jorge, interpretando o revolucionário.
Cinquenta anos depois de sua morte Marighella volta a incomodar o Estado. O motivo? Luta pela democracia e liberdade, assim como, superação dos desmantos estatais por meio de governos truculentos.
O assunto é polêmico, sobretudo, por que há no Brasil atual a tendência de negação de verdades históricas. Nega-se a ditadura; negam-se as lutas e os ideais coletivos e não se reconhece a luta e resistência histórica dos ideias comunistas e movimentos armados das décadas de 1960 e 1970.
A trajetória política de Carlos Marighella apesar de extensa e conturbada, pode ser resumida em alguns parágrafos. O político nasceu em Salvador no ano de 1911, e ingressou no Partido Comunista do Brasil (PCB) em 1932. Atuou como militante do partido na Bahia até 1936, quando foi enviado pela direção do partido para São Paulo. Após algumas prisões conseguiu se eleger deputado no ano de 1943. Depois de um período alvorotado de militância; prisões e divergências políticas com o PCB foi expulso do partido no ano de 1967 (REIS FILHO; SÁ, 1984). 
Do ano de sua expulsão em diante, Marighella passou a se dedicar a militância armada, escrevendo, inclusive, textos que justificavam tal posição. Foi assim no ano de 1968, quando escreveu sobre a “guerrilha no Brasil”, pontuando os aspectos latino-americanos embasadores de sua postura, destacando o caso de Cuba como exemplo a ser seguido pelos países latino-americanos.
O esforço de Marighella foi para que houvesse um novo instrumento de lutas que superasse a militância tradicional, que se expressava, via de regra, em partidos políticos. Nesse sentido salientava que uma militância vanguardista não atrelada aos aparelhos do Estado era necessária pelo fato de ser mais prática e adequável às situações hostis com mais facilidade. Outro ponto que foi frisado pelo líder da Aliança Libertadora Nacional (ALN) era que esse movimento, basicamente, se pautava pelas ações, sem se prender aos debates teóricos (SILVA JÚNIOR, 2009).
A ALN constituiu-se, numa organização combativa, focada na ação revolucionaria, sendo, portanto, a primazia aos debates teóricos, tratada como desperdício de tempo (ROLLEMBERG, 2001). Toda a teoria, na concepção de Marighella, tinha sido expressa nos escritos do líder bolchevique, Lênin, na então recente revolução russa. Aos militantes comunistas, caberia a partir desse pressuposto focar-se em ações práticas e combativas (MARIGHELLA, 1979).
Havia na década de 1960 um ideal coletivo comum que orientou vários movimentos na luta pela liberdade e democracia. Mesmo não concordando em sua totalidade com algumas variações da militância o ideal de resistência sustentava a gerava solidariedade entre os diversos grupos. Foi assim que, por exemplo, Marighella se aproximou dos dominicanos.
A aproximação entre os dominicanos e Marighella ocorreu após o AI-5, mais precisamente em maio de 1969 quando líder da ALN pediu ajuda aos religiosos, na passagem de refugiados para o Uruguai (BETTO, 1982). A certeza de que o projeto de libertação proposto por Marighella adstringia com preceitos cristãos era interpretado à luz do termo espiritualidade, que alguns cristãos libertários denominam de práxis cristã.

Nós cremos que há lugares onde a única maneira de dizer libertação – por exemplo – é fazê-la. E devemos crer que, de alguma maneira em todos os tempos e em todos os lugares, a única maneira de dizer é fazer (...).

Realizar-se, entre nós, passou a ser sinônimo de realizar-se na ação, na práxis de algumas obras concretizadas e transformadoras. Para nós a “realização pessoal” exige realização social. Nesse sentido, os personalismos subjetivistas e as fronteiras de classe, de estado, de status... nos fazem mal espiritualmente e fazem chiar a contextura interpessoal e práxica de vizinhança, país ou de mundo, que nossa inter-relacionalidade e nossa praxidade pedem (CASALDÁLIGA; VIRGIL, 1993, p.73).

Essa noção de espiritualidade já vigorava no seio dos setores progressistas cristãos e foi  sistematizada pela Teologia da Libertação ao longo dos anos. Tal mentalidade fazia com que houvesse cada vez mais sintonia entre cristãos e militantes políticos na busca pela liberdade democrática e pelo fim do regime militar.
A figura de Marighella, entre outras coisas, representa a luta contra o autoritarismo e sistemas despóticos de governo. Nesse sentido, não é de estranhar que o atual governo seja contra a liberação de verbas para a veiculação do filme.


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BETTO, Frei. Batismo de Sangue: os dominicanos e a morte de Carlos Mariguella. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.

MARIGHELLA, Carlos. Escritos de Carlos Marighella.  São Paulo: Editorial Livramento, 1979.

REIS FILHO, Daniel Aarão; SÁ, Jair Ferreira de.  Imagens da revolução: documentos das organizações clandestinas de esquerda nos anos de 1961-1971. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1985.

ROLLEMBERG, Denise.  O apoio de Cuba à luta armada no Brasil: o treinamento guerrilheiro. Rio de Janeiro: MAUAD, 2001.

SILVA JUNIOR, Edson Teixeira da. Carlos, a face oculta de Marighella. 1ª ed.
São Paulo: Expressão Popular, 2009.


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