O discipulado, os evangelhos e o metodismo
Tema
controverso, complexo e que – pelo menos – nos últimos 20 anos tem ganhado cada
vez mais espaço nas igrejas no Brasil e no mundo. Assim se apresenta o desafio
do discipulado. Mais que uma ordenança bíblica e um estilo de vida o assunto
envolve a revisão de um sistema teológico, eclesiológico e pastoral
desenvolvido na Igreja Metodista durante as três últimas décadas. Mas o que
podemos compreender sobre a proposta de Jesus sobre o discipulado em harmonia
com os evangelhos[1]?
Primeiramente
é necessário explicitar que a designação “Ide e fazei discípulos” tão comum
quando se trata do discipulado, é um tema específico do evangelho de Mateus,
que além de outras coisas trabalha numa perspectiva judaica em que o tema do
discipulado está em conexão com o imperativo “segue-me” utilizado entre os
rabinos e mestres judeus na formação da comunidade de seguidores dedicados em servir
a YAWÉ e estudar a Torah, através de novas hermenêuticas e aplicações no
cotidiano.
Em
todo o caso, o imperativo é tema da “grande comissão” (Mateus 28, 18-20), que
além de conter forte conexão com o universo judaico, expressa uma mensagem
específica de Jesus à comunidade de Mateus, principalmente pelo ambiente vivido
em Jerusalém depois do ano 70 EC, período em que a cidade viveu sob forte
tensão por conta de conflitos com o Império Romano (LUZ, 2005, p.560). Nesse
sentido, o “fazer discípulos” relaciona-se muito mais com o contexto do
Judaísmo formativo do que numa ordenança de fazer seguidores de determinado
líder ou determinada filosofia. “A comunidade de Mateus, presenciou e,
obviamente, esteve ela própria envolvida nesse processo de consolidação do
judaísmo pós-70, representado inicialmente pelo chamado judaísmo formativo” (OVERMAN,
1997, p.44).
O
tema do discipulado em Mateus tende a ser melhor compreendido por seus aspectos
sócio-econômicos e religiosos do que como um “estilo de vida” ou forma
eclesiológica, como muitas pessoas têm defendido nos últimos tempos[2]. Entretanto, não é por
isso que vamos abolir a filosofia de fazer discípulos e pregar o evangelho.
Apenas precisamos seguir as ordenanças pari
passu sem negligenciar suas implicações de justiça social, inclusão, profetismo
e luta por uma realidade social igualitária como relata Mateus.
O
discipulado na perspectiva mateana
envolve um protesto acentuado contra Roma e as politicas econômicas de
espoliação e marginalização da população empobrecida. A exemplo de Wesley e seus
grupos societários, o discipulado em Mateus consegue ser espiritual sem ser
espiritualista e social sem ser materialista, constituindo-se num desafio para
os metodistas do século XXI que pretendem assumir o compromisso do discipulado
no strictus sentido do termo.
Além
do desafio bíblico, teológico e pastoral fica o desafio denominacional de
honrar a herança wesleyana de compromisso social e espiritualidade engajada na
restauração da nação de da Igreja em particular, “espalhando a santidade
bíblica pela terra”.
Em
relação ao evangelho de Marcos pouca coisa podemos extrair sobre a temática do
discipulado. Devido a seu conteúdo sucinto não sobram muitas alternativas para
se fazer as inferências necessárias na compreensão do tema. O que podemos
afirmar é que as palavras finais de Jesus, assim como no evangelho de Mateus,
podem ser entendidas como ordenança ou ainda comissionamento e estão ligadas à
proclamação da mensagem, expressa no versículo 15 do capítulo 16 (Keryxate) derivado de (Kerygma) proclamação.
Se
compreendermos os evangelhos como relatos complementares e a Bíblia como
literatura (ABADÍA, 2000) – ainda que utilizando a ordem canônica e não
cronológica – observaremos que o discipulado na perspectiva de Marcos implica na
proclamação da mensagem. Nesse aspecto, pode-se introduzir a necessidade da
comunidade reunida para tal empreitada, no sentido de cooperação, isto é, a
comunidade reunida e caminhando para a proclamação do novo tempo (éon) que é traduzido em categorias
teológicas pela expressão Reino de Deus.
Interessante
é como os relatos contidos nos evangelhos vão tecendo as trilhas da caminhada e
sinalizando o caminho pelo qual a igreja, comunidade de Cristo, precisa trilhar
para encontrar um equilíbrio na vivencia das ordenanças de Jesus. O discipulado
exige um compromisso com a proclamação da mensagem e vivencia dos valores do
Reino de Deus.
A
necessidade da proclamação da mensagem não necessariamente implica em sua
verbalização, uma vez que o evangelho pode ser pregado mesmo sem utilizar as
palavras. Contudo, a herança wesleyana aponta para a prática da pregação ao ar
livre, ou proclamação comunitária como parte do conjunto do discipulado,
ensinado por Jesus.
A importância dessa pregação derivava
de que muito do que nela se continha era apresentado a audiências – reunidas ao
ar livre – que incluíam muitos pobres, que a Igreja desdenhara. Os sermões de
John Wesley eram dirigidos a pessoa cujas roupas não lhes permitiam entrar na
maioria das igrejas. É difícil subestimar o efeito de tal atrativo. Alguns
historiadores pensaram que o movimento metodista salvou a Inglaterra de uma
revolução social e política. Uma opinião dessa natureza deve ser conjetural; o
que é certo é que o movimento deu a vastos setores da sociedade inglesa um novo
sentido de autorrespeito, baseado no seu significado individual, no esquema de
universo (WOODWARD, 1964, p.63).
Um
dos elementos que facilitam na difusão da mensagem do evangelho é sua
proclamação de forma comunitária, atingindo, inclusive, lugares que
convencionalmente não se costuma ter acesso. Por isso, uma das instruções de
Wesley era para que se fizessem reuniões domésticas com o intuito de convidar
as pessoas para ouvir e compartilhar a palavra de Deus (SOUZA, 2009).
Daremos,
agora mais um passo para entendermos como o evangelista Lucas trata a questão. Tanto
o evangelho de Lucas, como o livro de Atos dos apóstolos – que segundo estudos
seriam o conjunto de uma mesma obra (KOESTER, 2005) – têm como elemento central
a revelação progressiva de Jesus por meio do caminho (hódos). Além de trabalhar numa lógica tida como “lógica dos
avessos”(MESTERS; LOPES, 1998), o evangelista focou a dinâmica da caminhada, ou
simplesmente “o caminho”.
Em
ambos os relatos os acontecimentos mais significativas se dão no caminho. Isso
incluindo o ministério de Jesus; a formação de igreja; a ação dos apóstolos e a
difusão da mensagem pelos confins da terra (At 1,8). O caminho proposto por
Lucas é repleto de desafios que provocam a comunidade dos discípulos a
transcender e ceder espaço ao novo e ao contraditório. Como exemplo, podemos
citar a inclusão dos samaritanos e sua exemplificação como servos de Deus e
cumpridores de sua vontade.
O
passo que Lucas dá em relação à temática do discipulado é de suma importância
para compreendermos a proposta de Jesus, uma vez que, o mestre de Nazaré aponta
para o contraditório ou revés como sendo o cumpridor da vontade e dos
propósitos de Deus. Mais que incluir e conviver, o discipulado é tido como um
caminho em que os diferentes se fazem iguais quando partilham do mesmo pão, sentam-se
à mesa e socializam suas frustrações, expectativas e esperanças.
Um
dos eixos do discipulado diz respeito à pluralidade da igreja. Não se pode conceber
o ideal de um grupo homogêneo e monolítico. Jesus deixa isso bem explícito
quando chama os doze discípulos para caminhar. Naquele grupo havia diversidade
de pensamentos e concepções a respeito do Reino vindouro, mas isso não os
impediu de caminharem juntos.
Mesmo
no movimento proto-metodista, havia o
respeito em relação a pluralidade de pensamento e opiniões, deixando-nos
entender que a dinâmica do discipulado além de bíblica, precisa estar
comprometida com as raízes wesleyanas (SOUZA, 2009).
O
quarto evangelho apresenta o discipulado na mesma proposta dos milagres de
Jesus descrito no “livro dos sinais”, compreendido entre os capítulos 2-12.
Essas narrativas tratam de 7 milagres feitos por Jesus na instauração, ou
sinalização do Reino de Deus. Como o próprio nome explicita os sinais são os
elementos marcantes nessa caminhada.
De
acordo com a teoria crítica, o evangelho de João termina no capítulo 20, sendo
o capítulo 21 uma espécie de adendo ou apêndice. Dentro dessa perspectiva,
podemos entender que a narrativa encerra com Jesus falando sobre os sinais que
seguiriam os que cressem em sua mensagem. Por sinais, entende-se as ações
concretas que intervém na vida das pessoas buscando valorá-las, restaurando
lhes a dignidade e promovendo –as como
sujeitos agentes de sua própria história. Esse é o sentido que Jesus confere ao
discipulado na perspectiva de João.
Disso
podemos depreender que o discipulado não se restringe ao “fazer discípulos”. O
tema, em conexão com os evangelhos, se constitui num desafio amplo e complexo
que nos leva a indagar se temos nos comprometido, de fato, com a compreensão
contida nos diferentes relatos sobre a vida e ministério de Jesus. Mais do que
um modelo programático e sistemático, o discipulado bíblico possui implicações
éticas e sociais que precisam ser levadas a sério.
Tony
Evans ressalta que há os elementos básicos relacionados ao discipulado
espiritual e dinâmico não podem ser desenvolvidos paralelos à estrutura da
igreja e precisam estar em conexão com: Deus, o próximo, a palavra e a
proclamação.
Se não houver igreja local, não existe
discipulado, porque nenhuma pessoa ou grupo pequeno dispõe de todos os dons e
do poder necessários para dar a qualquer crente todos os recursos fundamentais
ao desenvolvimento dessa pessoa. Isso tem de vir do corpo mais amplo, que de
modo especial forma o corpo de Cristo (EVANS, 2000, p.10-11).
A
opinião de Evans coaduna com os princípios do metodismo e com a estrutura da
igreja na forma de dons e ministérios. Uma vez que o discipulado deve estar
integrado às atividades da igreja visando contemplar os quatro princípios
expressos pelo autor e facilmente identificados no ministério de Jesus.
Basicamente
é isso que fica expresso quando fazemos a leitura conjunta dos quatro
evangelhos e compreendemos o discipulado como uma estrutura que os perpassa de
forma complementar, apontando o caminho que a igreja deve seguir e seus
respectivos compromissos com a salvação, santificação e vida em comunidade
abrangendo todas as suas dimensões, isto é, holisticamente.
A
Igreja precisa reafirmar suas origens, wesleyanas, sobretudo, e trabalhar o
discipulado numa perspectiva integral conectada com as demandas espirituais,
sociais, eclesiológicas e pastorais das diferentes realidades vividas em nosso
país, pois como vimos – ainda que de uma forma sucinta – há uma
complementariedade no que tange a temática e não se pode restringi-la ou
interpretá-la apenas baseada em um relato, mas necessitamos buscar suas
conexões e desdobramentos com os demais.
Que Deus nos abençoe nessa empreitada.
Referências:
ABADÍA, José Pedro Tosaus. A Bíblia como literatura. Petrópolis:
Vozes, 2000.
EVANS, Tony. Discipulado espiritual e dinâmico: os
quatro pilares indispensáveis para a maturidade cristã. São Paulo: Editora
Vida, 2000.
KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo Testamento. Vol. 2.
São Paulo: Paulus, 2005.
LUZ, Ulrich. El evangelio ségun San Mateo. Vol. IV.
Salamanca: Ediciones Sígueme, 2005.
MESTERS, Carlos; LOPES,
Mercedes. O avesso é o lado certo.
São Paulo: Paulinas, 1998.
OLIVEIRA, Anderson de Lima. Acumulai tesouros no céu: estudo da
linguagem econômica do evangelho de Mateus. São Bernardo do Campo: Universidade
Metodista de São Paulo (Dissertação de mestrado), 2010.
OVERMAN, J. Andrew. O evangelho de Mateus e o judaísmo formativo.
São Paulo: Loyola, 1997.
SOUZA, José Carlos. Leiga, ministerial e ecumênica: a igreja
no pensamento de John Wesley. São Bernardo do Campo: Editeo, 2009.
WOODWARD, E. L. Uma história da Inglaterra. Rio de
Janeiro: Zahar, 1964.
[1] A terminologia
evangelhos utilizada aqui diz respeito aos quatro registros canônicos sobre a
vida e ministério de Jesus e não a proclamação da mensagem em si. Embora o
teologicamente correto seja utilizar o termo no singular, a opção é proposital,
pois visa fazer conexão com os distintos relatos.
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