Frei Betto: trajetória política



Um dos instrumentos da análise da realidade adotado por anos pela Teologia da Libertação foi o marxismo. Frequentemente os adeptos dessa corrente são acusados de serem marxista. Vejamos qual a posição de Frei Betto em relação ao marxismo.

Frei Betto denomina o marxismo como uma teoria da “práxis revolucionária” e considera muito importante que a mesma seja utilizada como ferramenta de “libertação dos oprimidos”, pois, por ser fruto do proletariado, o marxismo deverá sempre ser aferido “por essa mesma luta” (BETTO, 1986, p.36).

Nessa perspectiva, ainda segundo o autor, nem o marxismo nem os marxistas podem ignorar o papel do cristianismo como instrumento de libertação – visto que o marxismo deu muito valor às questões materiais e não levou em conta o aspecto existencial – e salienta que para apreender o potencial revolucionário do cristianismo é necessário que o marxismo rompa com sua ótica “objetivista” – que não leva em conta a subjetividade do ser humano (questões existenciais) – e reconheça o papel da subjetividade humana na história. O autor faz algumas considerações – ressalvando sempre sobre os cuidados para não se premeditar nas análises – sobre o fim do socialismo no Leste Europeu. Vejamos como se posiciona Betto:
Somos contemporâneos do fenômeno, e por isso, talvez não tenhamos a isenção de futuros analistas em relação à falência do socialismo no Leste Europeu. Mas, numa análise imediata, constatamos que não se levou em conta a questão da subjetividade humana no projeto do socialismo. Por quê? Porque o próprio marxismo, nos seus fundamentos, não abordou mais profundamente a questão da subjetividade humana (BETTO; BOFF, 2005, p.30).

De acordo com a proposta de Betto, a prática revolucionária e libertária do marxismo necessita explorar outros elementos para além de um cientificismo absoluto e limitado pelo espaço e pelo tempo. De forma que, as dimensões éticas, místicas e utópicas podem (e devem) somar-se ao projeto de emancipação humana e construção de uma sociedade justa e igualitária, não perdendo, contudo, sua dinâmica crítica, mas aprimorando-a de acordo com as realidades locais e subjetivas dos indivíduos.

Nesse sentido, a esfera econômica, por ser determinante em última instância, resulta do complexo formado pelas forças produtivas e pelas relações de produção, sendo essas últimas determinantes do caráter das primeiras. Entre essas classes estão a militância revolucionária das classes dominadas cujas consciências práticas são primordiais no campo da economia. Se a subjetividade for negada, assim como a intencionalidade humana, o marxismo se reduzirá a uma teoria puramente científica. Mas a riqueza da teoria marxista está em sua residência que vincula à prática revolucionária, que em sua dinâmica contesta a teoria que a inspira e orienta, ou seja, é uma relação dialética teoria-práxis (BETTO, 1986).

Frei Betto ressalta a importância da critica marxista à religião, de forma que ela serve à purificação da fé e da vivência cristãs e salienta que o Deus em que os cristãos crêem não é o mesmo deus que o marxismo nega, pois o Deus dos cristãos não é o deus do capital, das torturas ditatoriais, ou ainda das idolatrias modernas (BETTO, 1986).

Na luta por justiça os cristãos entram em contato com forças políticas e ideológicas. Essa é uma prática que une cristãos e comunistas na luta por inimigos comuns: a idolatria do mercado, a exploração capitalista a favor do direito dos pobres e do futuro socialista. A leitura de Betto é que não foi o marxismo que levou amplos setores cristãos a descobrirem os pobres, mas foram os pobres que levaram os cristãos a descobrirem a importância das mediações analíticas (BETTO, 1986).

Para Betto o socialismo ideal é aquele que consegue equacionar a questão do sentido da vida, ou seja, esse socialismo não deverá considerar o ser humano como mero produtor de bens materiais. Nesse ponto ele considera que o socialismo do Leste europeu falhou por não levar em consideração o coração do ser humano (a beleza), pois inovou apenas em termos materiais, mantendo, contudo, o material velho em termos pessoais. Nesse sentido chama a atenção para como a produção de subjetividade tendo como referencial a Teologia da Libertação pode auxiliar na superação dessa lacuna.
Hoje, o Leste Europeu vive um acelerado processo de latino-americanização. Sem entrar na análise da crise do socialismo, quero constatar ser ela uma das razões pelas quais está havendo uma busca de espiritualidade diante da crise racional e da subjetividade, que mereciam ser melhor trabalhadas na dimensão do político (BETTO; BOFF, 2005, p.31).

Em suma, para Frei Betto a Teologia da Libertação pode e deve usar as ferramentas do marxismo para a promoção do Reino de Deus, que não diferencia muito do Reino da Liberdade pregado pelos marxistas, pois ambos trazem em seu bojo a idealização de liberdade, comunhão e a plena realização do ser humano, porém ressalta que não se pode deixar de lado a mística, ou seja, a religião, pelo fato de o ser humano ter fome tanto de pão como de beleza – necessidades existenciais.

Como cristão libertário Frei Betto se viu impelido a lutar contra o sistema opressor da ditadura, o que o levou à prisão ainda no ano de 1969, por ser suspeito de estar ligado ao grupo “terrorista” liderado por Marighela que, na época, fora acusado por vários atos ocorridos no país que variavam desde assalto a banco ao sequestro de um embaixador norte-americano (BETTO, 1982).

Dentro da prisão foi torturado pela sua posição política e principalmente por sua ligação com Marighela, contudo, isso fazia com que ele se sentisse ainda mais dignificado, por estar sofrendo como Cristo uma perseguição por querer uma transformação da sociedade a partir da denúncia dos poderes dos opressores e a instauração de um sistema que dignificasse o ser humano.

Na prisão, quando interrogado sobre a luta armada, Betto responde “Não quero outra coisa senão paz, muita paz. Por isso luto contra a violência da burguesia sobre os trabalhadores, das estruturas da sociedade capitalista”(BETTO, 1982, p.120). Ressaltando sempre que sua posição é de luta por uma sociedade justa onde a vida do ser humano esteja assegurada.

Durante os anos em que esteve preso, Frei Betto relatou vários momentos que chegaram a ser publicados pela revista Look, chamando inclusive a atenção da comunidade internacional para o que estava se passando no Brasil. Essas cartas transformaram-se em um livro que recebeu o título de Cartas da Prisão. Nesse período da vida de Betto, a mística cristã concretizou-se em forma de militância, sendo a mesma sustentada pela subjetividade da fé – elemento articulador.

Após sua saída da prisão (1973) Frei Betto continuou na militância política. Queria continuar sua resistência à ditadura.
Decidi ficar. Queria prosseguir na resistência à ditadura. Não por questão de coragem, e sim de teimosia. Depois do que padecera, e trazendo no coração tantos companheiros e companheiras assassinados pela repressão, eu não poderia cruzar os braços, ficar lá fora aguardando numa plataforma imaginária o trem da redemocratização do Brasil, sem dia e hora marcados para passar (BETTO, 2005, p. 43).  

Foi para o Espírito Santo trabalhar nas CEB´s  onde teve, pela primeira vez, um contato direto com a população carente, ministrando cursos bíblicos através do método Carlos Mesters[1]. Como relata: “Acolheram-me em Cariacica (ES), num casebre de madeira, em plena favela, dois missionários franceses, os padres Jean Fugeray e André Lepoutre. Pela primeira vez, entrei em contato com o povo” (BETTO, 2005, p.47).

Através desse método eram feitas leituras bíblicas de modo a confrontar a realidade do povo brasileiro com a realidade bíblica. Um dos exemplos citados pelo autor é o do personagem bíblico Moisés, que lutara contra a opressão do governo da época. Com isso visava-se conscientizar cada cristão/ã do seu importante papel na luta pela redemocratização do país.

Sua experiência (frustrada) com a luta armada o levou a concluir que o sujeito histórico naquele determinado momento era os trabalhadores. De forma que a “vanguarda” dessa vez deveria passar à retaguarda, auxiliando na sistematização política dos movimentos populares (BETTO, 2005, p.53).

No ano de 1978, na cidade de João Monlevade (MG), Frei Betto conhece o então líder sindical Lula, com quem conversa sobre a questão de que o trabalhador deve votar em trabalhador. Após alguns meses, em Salvador (BA), surgiu a idéia da criação de um partido dos trabalhadores. Essa proposta afinava-se com as expectativas das CEB´s que eram nutridas pela Teologia da Libertação e sistematizavam os princípios norteadores da relação fé e política. No ano de 1980 líderes de movimento sindicais, líderes de movimentos populares, religiosos e militantes identificados com aspirações libertárias, voltaram a se reunir em João Monlevade, visando o fortalecimento do movimento sindical e elaboraram um documento denominado Documento de Monlevade denunciando e repudiando as mazelas do sistema (BETTO, 2005).

Em 10 de fevereiro de 1980 é fundado o Partido dos Trabalhadores (PT), reunindo trabalhadores, intelectuais, religiosos e uma parte significativa da ala da esquerda marxista. Frei Betto estava entre os que haviam escapado da repressão militar e agora sonhavam com a construção de um país melhor, ainda sobre uma incipiente abertura política.

Após a fundação do PT Frei Betto ajudou Lula em suas quatro campanhas para a presidência da república, chegando inclusive a escrever no ano de 1994 uma cartilha intitulada Por que eleger Lula para presidente da República. Na ocasião em que Lula foi eleito pela primeira vez o autor descreve sua emoção como um sonho que naquele momento havia sido realizado. Essa vitória, segundo o autor, não era só de Lula, mas do povo e do PT, que descreve o surgimento do partido dessa forma:
Ganhou vida o embrião inseminado pela resistência indígena frente aos colonizadores portugueses, Henrique Dias, André Vidal de Negreiros, o índio Camarão, a revolta dos escravos nas senzalas, Zumbi demarcando em Palmares o território da liberdade, o alferes Tiradentes esconjurando o saque, Gonzaga das Virgens, Manuel Faustino, Lucas Dantas e João de Deus, Frei Caneca, Angelim, Cabanagem, Sabinada, Balaiada, Malês, Revolução Praieira, Antonio Conselheiro, Joana Angélica, o Almirante Negro, anarquistas e comunistas, O “monge” João Maria, Prestes, Olga Benario, Ligas Camponesas, Marighela, Lamarca, frei Tito (BETTO, 2005, p.20).
Nos anos de 2003 e 2004, Frei Betto ocupou as funções de assessor Especial do Presidente da República e Coordenador da Mobilização Social do Programa Fome Zero, o que de certa forma foi fruto do cristianismo que o autor sempre defendeu e acreditou.

Seus registros sobre o período em que integrou a equipe de governo do presidente Lula estão registrados em Calendário do poder (2007) em que faz uma espécie de diário sobre os acontecimentos e bastidores do governo. Reuniões, viagens, encontros e assessorias estão todos registrados com as devidas ressalvas.

Talvez um dos momentos mais marcantes foi quando Frei Betto aceitou o convite para assumir a assessoria especial do programa Fome Zero. Vejamos como o autor relata:
26 DE NOVEMBRO DE 2002 – TERÇA
Lula me convidou para Assessor Especial do Presidente da República e responsável, junto com Oded Grajew, pela mobilização social do Fome Zero. Convocado anteriormente a ocupar funções em administrações públicas recusei. Há vinte e dois anos acompanho a trajetória política de Lula e, agora, não posso me negar a segui-lo também no Planalto. Sobretudo por querer-me atuando em favor dos mais pobres- os beneficiários do Fome Zero.
Acolho como um dever pastoral e político (BETTO, 2007, p.48).

Embora integrando a equipe do governo Lula, Frei Betto sempre preservou sua autonomia crítica em relação a determinados posicionamentos e decisões com os quais não concordava. Isso está registrado ao longo de Calendário do poder. São inúmeros pontos e questionamentos feitos por ele ao governo. Tais foram expressos tanto de forma oral quanto escrita. Um dos exemplos é uma carta dirigida ao presidente Lula enviada em conjunto com outros assessores para tratar de um projeto de empregos. A carta está impressa em Calendário do poder ao final ao o seguinte registro:
Nunca obtivemos resposta da Presidência da República. Desperdiçou-se assim uma ocasião privilegiada de demostrar o empenho do governo federal no combate ao desemprego, bem como de mobilizar milhares de empregadores que sensibilizados pela propaganda na TV, com certeza dariam uma resposta positiva (BETTO, 2007, p.97-98).

Com o passar dos primeiros meses Frei Betto já se dava conta de que o governo Lula não se tratava de um governo revolucionário com uma política de esquerda, mas sim de um governo popular que havia sido eleito por meio de alianças, inclusive com setores empresarias, bancários e empreiteiros. Era um governo que mesclava patrões e empregados, ou seja, um governo de coalizão de classes. Vejamos como descreve os primeiros meses: “após 100 dias de governo, convenço-me de que, para entender a administração Lula, deve-se partir de duas premissas: não se fez revolução, ganhou-se uma eleição; não se chegou ao poder, mas ao governo” (BETTO, 2007, p.102).

Talvez a expectativa – não somente de Frei Betto, mas de grande parte dos entusiastas do governo Lula – era de que com um operário na presidência haveria profundas modificações na correlação de forças produtivas da sociedade e consequentemente melhor distribuição de renda, socialização das riquezas, taxação de fortunas, reforma agrária entre outras mudanças, mas Betto já nos primórdios do primeiro governo Lula fazia a distinção entre ganhar uma eleição e fazer uma revolução. Como pondera:
Ganhar uma eleição é muito diferente. Significa respeitar o jogo democrático que favorece a disputa entre partidos e candidatos portadores de projetos e ideologias conflitantes. Ainda que não se ignore o peso das estruturas burguesas, sobretudo na discrepância entre candidatos regiamente financiados e os que mendigam voto a voto, a democracia representativa (inconclusa enquanto não se torna participativa) não suporta rupturas bruscas (BETTO, 2007, p.102).
Diante de um governo de coalizão que mescla apoio de movimentos sociais, empreiteiros, banqueiros e interesses partidários diversos há de se ter muita habilidade para equacionar as diferentes tendências. No primeiro ano de governo Betto observará isso e muitas coisas lhe incomodara. Os registros de suas cartas às autoridades encontram-se datados e assinados ao longo do Calendário.

No final de 2004 já se ouvia rumores sobre corrupção no governo Lula.
4 DE DEZEMBRO DE 2003
Cobrei de Gilberto de Carvalho a apuração de prováveis maracutaias na Petrobrás. Disse-me ter convocado, para os próximos dias o chefe de gabinete de José Eduardo Dutra. De minha parte nenhuma parte recai sobre o presidente da empresa em seu chefe de gabinete. É mais embaixo o buraco por onde acredito escorrem orçamentos superfaturados (BETTO, 2007, p.256).
Ao longo de 2004 a “saga” continuou: reuniões, encontros, cartas, audiências, denúncias de corrupção. Tudo devidamente registrado. Frei Betto nunca deixou de registrar seus desapontamentos e críticas em relação ao governo do PT. Foram inúmeros fatores que o fizeram optar por não fazer mais parte do governo. Tais fatores vão desde as regalias que os integrantes do governo desfrutavam no Palácio do Planalto às decisões econômicas e posições adotadas pelo governo.

Por isso no final do ano de 2004 Frei Betto pediu exoneração sua justificativa fez se da seguinte maneira: “ “sempre fui crítico ao governo internamente”, e que descobri não ter vocação ao serviço público” (BETTO, 2007, p.505). A saída de Frei Betto do governo não cessou seu apoio à Lula e ao PT. Sua atuação passou a ser fazer na militância de base, isto é, junto aos movimentos sociais como o MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra) e das pastorais de base da Igreja Católica. 



[1] Método de leitura popular da Bíblia difundido pela Teologia da Libertação baseado na tríade ver-julgar-agir. Que por meio de uma leitura mediada por instrumentais sociológicos visam incentivar a militância social a partir de textos e histórias bíblicas (BETTO, 2005, p.48).

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