Poder descentralizado: entre tribalismo e Filosofia da Libertação
Questão
que vez por outra aparece e pauta conversas e debates é: qual é a melhor
maneira de organização social (e consequentemente de governo)? Não se sabe se
por consenso ou mero pragmatismo a democracia foi (e é) o governo adotado em
grande parte do mundo. Sua eficácia, modelo e aplicação são (altamente)
questionáveis, entretanto quando se faz alguns apontamentos a resposta
corriqueira é: com todas as suas mazelas ainda é o melhor governo que temos. Será?
Talvez
uma das formas mais eficientes de governo e organização esteja na tradição
semita, em particular, na organização tribal dos hebreus. Gerard Von Rad
destaca que a organização do Israel tribal era feita de maneira autônoma “[...]
as tribos viviam lado, quase que totalmente independentes. Em comum havia, por
certo, a veneração de Javé e as obrigações de manutenção do santuário” (VON
RAD, 1973, p.38). As tribos, por conseguinte, eram compostas por famílias, ou
seja, pequenos núcleos que se organizavam e resolviam suas demandas conforme
surgiam.
Qual
era a natureza da organização? A natureza da organização tribal do Antigo
Israel parece ser de solidária. Gottwald define tribos pelo termo mishpahah. E de acordo com sua definição
era organizada da seguinte maneira:
Uma
mishpahah é composta de “parentes” (não
envolvendo um descendente como tal, mas, fundamentalmente, uma comunidade de
interesses partilhados) e a organização da mishpahah
possui algumas funções determinadas para proteger a solidariedade de seus
membros (GOTTWALD, 2004, p.267).
Percebe-se que se trata de uma organização
solidária em que não há um poder central organizador e deliberativo, muito
menos um Estado, por isso esse momento da história do Antigo Israel é
denominado de anarco-tribalismo. O sistema ainda chama atenção por sua
praticidade. Havia uma lei moral pela qual as atitudes eram pautadas e em
determinados momentos organizavam-se em conselhos para deliberar sobre questões
críticas.
A
maneira de se fazer justiça e juízo nessa organização dava se por meio da “porta”
da cidade, ou seja, um tribunal que deliberava sobre questões que surgiam em
casos excepcionais como destaca Crüsemann: “o quadro tribunal “na Porta” dos
povoados, para o qual se reuniam, em caso de necessidade, os homens livres,
proprietários de terras, e no qual sobretudo os anciãos têm uma palavra
decisiva [...]” (CRÜSEMANN, 2002, p.99). Isso pode ser exemplificado, por
exemplo, quando Labão pede a formação de um tribunal em Gn. 31,37.
O
tribalismo foi predominante antes da fixação na terra e estabelecimento do
Estado. Depois disso Israel não preservou a forma original de governo como
menciona Von Rad: “a comunidade das tribos que se fixaram na região agrícola
exigia novas regras de vida, fundamentadas em novas bases, pois a imigração
modificara profundamente a estrutura sociológica das velhas associações seminômades”
(VON RAD, 1973, p.46).
A
partir do momento de estabelecimento do Estado começa a injustiça a corrupção em
Israel. O poder central passa a ser visto como o prenúncio da idolatria. A
projeção que era feita tanto em torno dos governantes e das próprias estruturas
de Israel levou o povo a deixar a aliança de fidelidade a Deus e abandonar o
ideal comunitário de fraterno – projeto original de Javé.
De
maneira geral são os profetas que chamam a atenção para o projeto original de
Deus (tribal) e denunciam a idolatria do Estado. A mensagem destes é de volta
ao trabalismo e ao governo descentralizado pautado da justiça e equidade.
Vejamos o exemplo de Oséias analisado por Schwantes: “[...] Oséias nos
apresenta a situação da mulher camponesa, de mulheres como Gômer. A culpa por
essa deformação adúltera é, antes de tudo, do rei, do sacerdócio, do templo.
Oséias é radicalmente anti-monárquico.
Anuncia o “fim do reinado” (1,4), não só do rei, e proclama que Javé não quer
sacrifícios, templos, porém “solidariedade”/hesed
(6,6). (SCHWANTES, 2008, p.67)
Observa-se
que a forma de conselhos ou comitês são “mais democráticas” e eficazes tanto
para administrar, governar e julgar. Para que isso seja efetivado precisa-se
contudo observar três elementos: (a) o poder do povo; (b) o exercício do poder
de forma obedencial e a (c) razão
consensual prática presentes na Filosofia da Libertação.
Desde
os contratualistas se sabe que o poder pertence ao povo, que cede ao
representante para que esse governe e o exerça em nome e em favor do povo. O
problema é que em muitos casos o poder, que deveria ser exercido em nome do
povo, é desvirtuado e passa a ser exercido em nome de uma pessoal ou grupo.
Dussel destaca a premente necessidade de o poder ser construído desde uma
perspectiva popular.
O “povo” se transforma, assim, em
ator coletivo político, não em um “sujeito histórico” substancial fetichizado.
O povo aparece em conjunturas políticas críticas, quando toma consciência
explícita do hegemón analógico de
todas as reivindicações, de onde se definem a estratégia e as táticas,
transformando-se em um ator, construtor da história de um novo fundamento. Tal
como expressam os movimentos sociais: “O poder se constrói de baixo”. (DUSSEL,
2007 p. 94)
Tal
elemento de “poder popular” pode ser notado com facilidade quando observamos o
modelo de governo do Antigo Israel e seu sistema de governo e deliberação. É interessante
ressaltar que a forma tribal de organização é consenso entre os historiadores
do Antigo Israel e pode lançar base para se pensar um modelo de organização
político-jurídico mais eficaz.
Além
disso, o poder deve ser exercido de forma obedencial.Como
isso se dá? Na prática o poder obedencial
é um poder que deve ser exercido em nome do povo. Em síntese é afirmar que
quem manda deve mandar obedecendo. Dussel utiliza o termo potentia para designar o poder popular e o define da seguinte forma
“[...]é o fundamento de tal exercício (e por ele o poder legítimo é exercido
pelos que mandam obedecendo a potentia):
poder obedencial
(DUSSEL, 2007,p.62). A proposta de Dussel em sua Política da Libertação é que o
poder seja algo que se exerça de maneira fraterna, isto é, os que o exercem e
as instituições revestidas dele devem visar servir o povo e atendê-lo em suas
necessidades: uma mentalidade de poder como serviço.
Para
designar o serviço Dussel utiliza o termo habodah,
que em hebraico significa um serviço que é feito com devoção e amor fraterno à
causa destinada. Por isso o exercício do poder na maneira de obediência deve
visar as necessidades do povo – como era feito nas dimensões do Antigo Israel. É
eixo interpelador para se pensar um modelo democrático eficaz.
Por
fim temos a razão consensual prática que visa orientar as subjetividades para
um fim prático e objetivo na ação política. Consenso por que deve orientar as
diversas vontades para atender as necessidades básicas e vitais dos seres humanos. A razão prática
e pragmática é: “[...] condição de permanência da vida (desde a casa,
organização da sobrevivência familiar, etc.)” Noutras palavras é o querer viver
dos seres humanos.
Nesse
sentido as dimensões do Antigo Israel pensadas em consonância da proposta da
Política da Libertação ajudam a projetar um modelo democrático e
descentralizado para a política atual. Não se trata de um modelo novo, uma vez
que, suas raízes são mais antigas do que se pensa.
Essa
pequena reflexão contribui para pensar o modelo de sovietes, comitês e outras organizações descentralizadas no
exercício do poder. Não seria essa uma saída para nossa democracia?
Referências:
CRÜSEMANN,
F. A torá: teologia e história da lei
do Antigo Testamento. Petrópolis: Vozes, 2002.
DUSSEL, E. 20 teses de política. Buenos
Aires. São Paulo: CLACSO; Expressão Popular, 2007.
______. Política de la liberación: arquitectónica.
Madrid: Editorial Trota, 2009.
GOTTWALD,
N. k. As tribos de Iahweh: uma
sociologia da religião de Israel liberto, 1250-1050. São Paulo: Paulus, 2004.
SCHWANTES. M. Breve história de Israel. Oikos: São
Paulo, 2008.
VON RAD, G. Teologia no Antigo Testamento I. Aste: São Paulo, 1973.
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