Breve histórico da Teologia da Libertação


Breve histórico da Teologia da Libertação

1.   Teologia da Libertação no contexto latino-americano

A Teologia da Libertação é uma corrente teológica que foi desenvolvida inicialmente na América Latina, entre as décadas de 1960 e 1970, inspirada na opção pelos pobres e na luta contra a pobreza pela libertação e emancipação dos pobres. Utiliza, como ponto de partida de sua reflexão, a situação de pobreza e exclusão social, que são interpretados à luz da fé cristã, possuindo como eixo articulador a libertação dos oprimidos e cativos. Este estado é entendido como produto de estruturas econômicas e sociais injustas, construído a partir das relações econômicas que expropriam as riquezas e as distribuem de modo desigual. Esta reflexão é influenciada pela visão das ciências sociais, sobretudo pela teoria da dependência na América Latina, que possui inspiração marxista.[1]

Essa corrente notabilizou-se na luta pela vida e pela justiça social frente ao sistema capitalista, somando-se a outras correntes ideológicas que protagonizavam o embate vivido durante o século XX. 

No século XX, há dois marcos determinantes: a Revolução Russa (1917) e a queda do muro de Berlim (1989).[2] Este século viveu sob a tensão entre o comunismo e o capitalismo, sendo que, em face dessa dicotomia estabelecida por essas duas propostas, houve alguns atenuantes que fizeram partidos que não eram comunistas serem, conforme afirma Hobsbawm, “empurrados” para esse lado, tornando-se simpáticos a tal ideologia. Um exemplo clássico foi o Partido Comunista Cubano que, devido às campanhas antissocialistas da década de 1950[3] e os ideais da Guerra Fria, teve que tomar uma decisão, sendo impelido a seguir na direção do comunismo marxista e fazendo os latinos anti-imperialistas olharem Marx “com bondade”.[4]

A Revolução Cubana forçou uma redefinição de posições em relação aos padrões de integração social que correspondiam às alternativas de desenvolvimento da civilização mundial.[5] No caso de Cuba, a prática sempre precedeu a teoria, ou seja, as lutas foram sendo travadas enquanto se traçavam as estratégias político-ideológicas.[6]

A bipolarização mundial contribuiu para a aproximação cada vez maior entre os revolucionários cubanos e os pressupostos teóricos marxistas, sendo que, inicialmente, a intenção de Fidel Castro era que a revolução tivesse caráter nacional; para Fidel, a revolução deveria ser “dos humildes, pelos humildes e para os humildes”.[7] Não havia, nos primeiros anos da revolução, nenhuma definição sobre o seu caráter socialista.[8]

A Revolução Cubana (1959) pode ser tomada como parte do pano de fundo para o surgimento da TdL (Teologia da Libertação) por tratar-se de um fato de suma importância, tanto para a América Latina, como para toda a comunidade mundial, pois se, por um lado, a revolução liderada por Fidel Castro, Ernesto “Che” Guevara, Raul Castro e demais militantes da frente revolucionária cubana teve a capacidade de despertar o ânimo dos jovens idealistas latino-americanos[9], por outro, ela foi capaz de mobilizar setores como o serviço de inteligência estadunidense no combate ao regime cubano. As represálias às ameaças comunistas não ficaram somente em Cuba – por meio da invasão da Baía dos Porcos –, mas estenderam-se por todo o continente pelos diversos golpes militares.

A onda de regimes militares direitistas que começou a inundar grandes partes da América do Sul na década de 1960 – o governo militar jamais saíra de moda na América Central, com exceção do México revolucionário e da pequena Costa Rica, que na verdade aboliu seu exército após a revolução em 1948 – não respondia, basicamente, aos rebeldes armados. Na Argentina, eles derrubaram o caudilho populista de Juan Domingo Perón (1895-1974), cuja força estava na organização dos trabalhadores e na mobilização dos pobres (1955), após o que se viram retomando o poder a intervalos, pois o movimento de massa peronista se revelou indestrutível e não se pôde construir nenhuma alternativa civil estável (...).
As forças Armadas tomaram o poder no Brasil em 1964 contra um inimigo bastante semelhante: os herdeiros do grande líder populista brasileiro Getúlio Vargas (1883- 1954), que se deslocavam para a esquerda no início da década de 1960 e ofereciam democratização, reforma agrária e ceticismo em relação à política americana.[10]

No Brasil, o Golpe civil-militar de 1964 contou com o apoio da burguesia – além dos setores das forças armadas.[11] Caio Prado Junior, ao analisar a evolução política, pontua que o papel do país frente aos interesses imperialistas caracterizou-se pela “frequente passividade”. Prado Júnior assegura que a burguesia brasileira sequer considerava imperialistas as inversões de capitais estrangeiros no país, o que revela a ausência do que se pode denominar consciência da “burguesia nacional”.[12] 

Por isso destaca, em sua análise, que a função da burguesia nacional – fazer frente aos interesses imperialistas em prol dos interesses nacionais, visando o desenvolvimento do país – não pode ser aplicada ao contexto brasileiro.[13] Para Prado Júnior, a mentalidade da burguesia brasileira não representou os interesses internos do país, mas “refletia os interesses internacionais”, sendo este um dos motivos que fez com que grande parte dela apoiasse o regime militar.[14]

2. América Latina na relação com o Hemisfério Norte

A América Latina, desde a chegada dos europeus, entre o final do século XV e início do XVI, foi objeto de exploração do capital europeu e, mais tarde, do capital norte-americano. Tal relação justificaria a influência intervencionista e o apoio aos regimes militares em todo o continente.[15]
Enrique Dussel destaca que a exploração europeia em terras latino-americanas se deu por haver uma ideologia que legitimava as práticas de expropriação das riquezas naturais, além do fato de o continente ser considerado a periferia da Europa.[16] Dessa forma, o autor assegura que “a periferia da Europa serve assim de “espaço livre” para que os pobres, fruto do capitalismo, possam se tornar proprietários nas colônias”.[17]

Já Galeano analisa os principais pontos do que se pode denominar de “colonização” da América Latina, tratando-os como “veias abertas”. O autor destaca os aspectos dos períodos mais importantes, ressaltando suas devidas implicações.[18] Como o recorte proposto para esse capítulo é o pós-guerra, apontaremos alguns fatores destacados por ele referentes a esse período.

A década de 1950 foi marcada pela industrialização na América Latina, promovida, em grande parte, pelos Estados Unidos da América (EUA). Os EUA estavam preparados para guiar os países não-desenvolvidos nessa empreitada, fazendo com que ela fosse controlada; tal controle tinha o intuito de evitar um golpe econômico fora da égide norte-americana.[19] Entre 1957 e 1964, duplicaram-se as vendas das filiais norte-americanas, enquanto suas importações, sem incluir os equipamentos, “multiplicaram-se por mais de três”.[20]

O contexto em que a América Latina encontrava-se nos primeiros anos da segunda metade do século XX era de dependência do capital estrangeiro e de forte influência em sua política econômica, principalmente por parte dos EUA. Esse é um dos fatores que explicam a repressão aos movimentos populares e políticos que contestam o status quo.  Conforme Galeano, não só houve repressão a tais movimentos como também embargo em relação aos países comunistas.

As alavancas fundamentais do comércio exterior ficam, assim, em mãos das empresas norte-americanas ou europeias que orientam a política comercial dos países, segundo o critério de governos e diretorias alheias à América Latina. Assim como as filiais dos Estados Unidos não exportam cobre à URSS nem a China vende petróleo a Cuba, tampouco se abastecem de matérias-primas e maquinárias nas fontes internacionais mais baratas e convenientes.[21]

Na década de 1960, crescia uma mentalidade denominada “terceiro mundismo”[22], em que havia a crença de que o mundo seria emancipado pela libertação de sua periferia empobrecida e agrária, explorada e forçada à dependência pelos países-núcleos. Essa corrente tomou conta de grande parte dos teóricos de esquerda do chamado Primeiro Mundo.[23] Compreende-se que o sujeito histórico havia se adaptado ao tempo em que se vivia, pois, se outrora o proletariado foi visto como sujeito histórico de vanguarda, agora haviam novos sujeitos que, paulatinamente, ganhavam espaço no cenário das lutas sociais.

De acordo com Hobsbawm, nos notáveis países do capitalismo industrial não havia a crença de que a clássica perspectiva de revolução social e ação de massa lograriam êxito. Contudo, mesmo no auge do que o autor denomina “prosperidade ocidental”, os governos, subitamente, se viram diante de algo que não apenas parecia a “velha revolução”, mas também revelava a fraqueza de tais regimes, que se demonstravam aparentemente firmes: era o movimento estudantil.

Em 1968-9, uma onda varreu os três mundos, ou grande parte deles, levada essencialmente pela nova força social dos estudantes, cujos números se contavam agora às centenas de milhares mesmo em países ocidentais de tamanho médio, e logo se contariam aos milhões. Além disso, seus números eram reforçados por três características políticas. Eram facilmente mobilizados nas enormes usinas de conhecimento que os continham, deixando-os ao mesmo tempo mais livres que os operários em fábricas gigantescas. Eram controlados em geral nas capitais, sob olhos dos políticos e das câmeras dos meios de comunicação. E sendo membros das classes educadas, muitas vezes filhos da classe média estabelecida, e – quase em toda parte, mas, sobretudo no Terceiro Mundo – base de recrutamento para a elite dominante de suas sociedades, não eram tão fáceis de metralhar quanto as classes mais baixas.[24] 

A revolta estudantil de fins da década de 1960 foi o último ataque da revolução mundial. Ela foi revolucionária tanto no antigo sentido utópico de buscar uma inversão permanente de valores e uma nova sociedade perfeita, quanto no sentido operacional de procurar realizá-la pela ação nas ruas e barricadas. Foi global, pelo fato de que o mundo em que viviam os ideólogos dos estudantes era global. Os mesmos livros eram publicados nas livrarias das diversas partes do mundo, quase que simultaneamente. Dessa forma, os turistas da revolução cruzavam o mundo falando a mesma língua.[25]

A década de 1960 também ficou marcada por novos fenômenos latino-americanos, que se constituíram em uma novidade que era, ao mesmo tempo, intrigante e perturbadora. Tratava-se do surgimento de padres católico-marxistas, que apoiavam, participavam e lideravam insurreições.
A tendência, legitimizada por uma “teologia da libertação”, apoiada por uma conferência episcopal na Colômbia (1968), surgira após a Revolução Cubana e encontrara poderoso apoio intelectual no setor mais inesperado, os jesuítas, e na menos inesperada oposição do Vaticano.[26]

Tais fatores emergiram como catalisadores no processo de gestação de um novo fazer teológico, e contribuíram com o momento histórico vivido na história da América Latina nos anos 1960 e 1970.



3.Teologia da Libertação no contexto brasileiro

No Brasil, os pontos que podem ser tomados como pano de fundo para o nascimento da TdL são a posse do presidente da República, João Goulart (1962), e o Golpe Militar (1964). Faremos, então, uma sucinta abordagem do governo de Jango, como era popularmente conhecido.

Desde o início da década de 1950, houve um avanço dos movimentos sociais e o surgimento de novos atores. Alguns setores, como o campo, que outrora haviam sido esquecidos pelo governo populista, começaram a se mobilizar, dando origem a um importante movimento do período, chamado Ligas Camponesas.[27]

Essas Ligas surgiram na década de 1950, entretanto, foi na década de 1960 que ganharam força, transformando-se no maior movimento agrário do país. Lideradas por Francisco Julião, contaram, a partir de 1961, com o apoio da Igreja Católica e do PCB. Inaugurava-se, nesse momento, um período de intensas ocupações de terras nos estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e no Nordeste.[28]

Durante o governo de Jango, os estudantes, por meio da UNE, também se mobilizavam e radicalizavam suas propostas de transformação, passando, inclusive, a intervir diretamente no jogo político. No que diz respeito à Igreja Católica, mudanças significativas começaram a acontecer.[29] Houve, nesse período, diversas posições tomadas pelos seus líderes, que iam desde o ultraconservadorismo até aberturas à esquerda, típicas da Juventude Universitária Católica (JUC).

A Igreja Católica desenvolvia, nesse período, várias ações no meio estudantil, com o intuito de que houvesse maior participação dos estudantes na política. Toda a orientação era feita por meio da leitura humanista do Evangelho.[30] O resultado dessa iniciativa foi a criação de lideranças, que ganhariam, nos anos posteriores, projeção nacional.[31]

Ainda no que tange ao cenário político, o que marcou o período foram algumas mudanças que ocorreram em relação às Forças Armadas. A mudança mais significativa foi a formulação de uma nova doutrina, elaborada pelos militares durante a Guerra Fria, e que ganhou contornos mais nítidos após a Revolução Cubana.[32] Havia um interesse em conter as influências comunistas; por isso, surgiu a doutrina da segurança nacional, que foi gerada na Escola Superior de Guerra.[33]

O governo de João Goulart começou com algumas limitações devido ao sistema parlamentarista. Em janeiro de 1963, o sistema presidencialista voltara, e João Goulart assumia, de vez, o governo. Suas medidas - que visavam reformas nos mais diversos setores da sociedade brasileira - motivaram, no ano seguinte, o Golpe Militar, liderado por militares que eram apoiados por políticos conservadores. É nesse contexto de confronto (de um lado, as tentativas de ascensão de diversos movimentos sociais e, de outro, a supressão da liberdade pelo regime militar) que surge a TdL. Foi um período marcado por disputas políticas e pela ascensão dos movimentos sociais.

De acordo com Leonardo Boff, a TdL nasceu em meio à “reivindicação dos movimentos populares que tomaram consciência”, nos anos 50 e 60, da exploração capitalista promovida pelos governos populistas. Tais reivindicações provocaram o surgimento de “ditaduras militares em toda a América Latina”.[34] Não obstante, havia, por parte dos países capitalistas, interesse em conter a influência socialista de Cuba, que serviu, na verdade – principalmente no contexto latino-americano –, como contraponto à política econômica que vigorava em todo o continente.

Em meio ao contexto dos golpes militares, que ocorriam em todo o continente latino-americano, e da dependência econômica, provocada por um modelo excludente, observou-se a necessidade de dialogar temas concernentes à Igreja e à sociedade. Por conseguinte, foi, aos poucos, sendo gestada uma teologia em que se contestasse a injustiça e a exploração gerada por um modelo econômico excludente.

Na década de 1950, no meio protestante brasileiro, foi realizada, na cidade de São Paulo, uma conferência para discutir as relações entre as igrejas e a sociedade.[35] Tal evento inspirou a articulação de esforços de diferentes setores evangélicos preocupados com a relação igreja-sociedade e as diversas expressões nacionais da sociedade latino-americana. Essa conferência influiu nos esforços desenvolvidos por setores mais politizados e teologicamente mais abertos que faziam parte da série de encontros continentais conhecidos como “Conferências Evangélicas Latino-Americanas” (CELAS). É a partir desses empenhos que se cria, em 1961, a “junta Latino-Americana de Igreja e Sociedade”, que posteriormente passou a ser conhecida como ISAL (Igreja e Sociedade na América Latina).[36]

O marco efetivo desse período foi a realização, em 1962, no Recife, da chamada Conferência do Nordeste, terceira de uma série de encontros sobre as relações de Igreja e Sociedade, que marcaram de forma decisiva o meio protestante brasileiro.[37]

Carlos Cunha, secretário executivo da Conferência do Nordeste, pontua que a conferência, na verdade, foi o resultado de um processo que se iniciou na década de 1950. Tal processo tinha o intuito de estudar as relações da Igreja com a sociedade. Inicialmente, as reflexões eram feitas a partir de bases bíblicas, porém, paulatinamente, as ciências sociais foram ganhando espaço, culminando na Conferência do Nordeste, que, segundo Cunha, foi a primeira vez que as igrejas, de expressão evangélica, se aventuraram a escutar as vozes de cientistas sociais e lideranças populares não-evangélicas, “na cratera de um vulcão que era o Nordeste brasileiro”.[38]

Tem-se, também, nesse período, no meio teológico católico, certa tendência de liberdade e criatividade, estimulada, principalmente, pelo Concílio do Vaticano II (1962-65). Este concílio foi considerado um marco para a Igreja Católica no século XX, pois foi visto por muitos como uma tentativa de modernizar a Igreja.[39] A abordagem de vários temas estimulou a coragem de muitos teólogos a pensar em questões pastorais que respondessem aos dilemas e contradições do sistema.

Teólogos como Gustavo Gutierrez, Segundo Galilea, Juan Luis Segundo, Lucio Gera e outros do lado católico e, do lado protestante, Emílio Castro, Júlio de Santa Ana, Rubem Alves e José Miguez Bonino começaram, mediante encontros, a aprofundar as reflexões sobre a relação entre fé e pobreza, evangelho e justiça social. No Brasil, a esquerda católica produziu entre 1959-1964 uma série de textos básicos sobre a necessidade de um ideal histórico cristão (Pe. Almery Bezerra, Pe. H. de Lima Vaz, DCE-PUC do Rio de Janeiro), ligando a uma ação popular, cuja metodologia já prenunciava a Teologia da Libertação; urgia-se um engajamento pessoal na realidade, decodificada mediante o estudo das ciências do social e do homem e iluminada pelos princípios universais do cristianismo.[40]

Algumas obras clássicas surgiram nesse período e tiveram muita relevância para o pensamento da TdL. Cláudio de Oliveira Ribeiro elenca algumas delas:[41]

·         Da esperança. Papirus, Campinas -SP 1987 [1968], de Rubem Alves;

·         Teología de la Liberación, CEP, Lima-Peru 1971, de Gustavo Gutiérrez (tradução para o português: Teologia da Libertação. Vozes, Petrópolis – RJ 1975);[42]

·         Teologia e prática: teologia do político e suas meditações. Vozes, Petrópolis – RJ, 1978, de Clodovis Boff;

·         Como fazer Teologia da Libertação. Vozes/IBASE, Petrópolis – RJ/ Rio de Janeiro 1986, de Clodovis Boff & Leonardo Boff;

·         As obras de Leonardo Boff: Jesus Cristo libertador (1972); A fé na periferia do mundo (1978); 

Igreja, carisma e poder: ensaios de eclesiologia militante (1981); Vida segundo o Espírito (1981) e Do lugar do pobre (1984). Todos esses livros foram publicados pela editora Vozes, Petrópolis-RJ.

Quanto aos aspectos concernentes à avaliação metodológica, Ribeiro destaca as seguintes obras: Teologia da Libertação: política ou profetismo? Visão panorâmica e crítica da teologia latino-americana, Loyola, São Paulo-SP 1977, de Alfonso Garcia Rubio; Teologia da Libertação: roteiro didático para um estudo, Loyola, São Paulo-SP 1987, de João Batista Libânio; Fé e eficácia: uso da sociologia na Teologia da Libertação, Loyola, São Paulo - SP 1991, de Paulo Carneiro de Andrade; e Teologia & Economia: repensando a teologia da libertação e utopias, Petrópolis –RJ 1994, de Jung Mo Sung.[43]

4. Teologia com instrumental marxista

A novidade metodológica da TdL, de acordo com Ribeiro, está  no “apelo prático”, na “sensibilidade especial em relação à realidade desumana” e opressiva vivida pelas populações empobrecidas e socialmente marginalizadas, e também em relação à “valorização das experiências de leitura popular da Bíblia”. Paulatinamente, surgia uma nova forma de ser da Igreja. Tal forma estava vinculada às possibilidades de transformação social e política, evidenciadas nas décadas de 1960 e 1980, possuindo como um de seus objetivos principais a busca de uma sociedade justa, igualitária, participativa e firmada nos princípios de justiça social.[44]

Essa proposta representou, desde seus primórdios, uma contraposição ao modelo econômico capitalista, sobretudo devido a sua forma segregacionista de ser: concentrador de riquezas em benefício de grupos minoritários, principalmente quando se trata da utilização dos países periféricos em relação aos centrais. Sendo assim, a perspectiva teológico-pastoral da TdL representou também uma contraposição à visão desenvolvimentista surgida nos anos de 1950. Tratava-se, portanto, de um novo referencial teórico da realidade, baseado nos estudos científicos que emergiam especialmente no campo sociológico.[45]

A utilização das ciências sociais foi o ponto de partida de reflexão da TdL. A presença da teoria da dependência nas primeiras obras da TdL é inegável. Nesse ponto, destaca-se a figura de Clodovis Boff, devido ao seu trabalho de fundamentação sistemática, dada a necessidade de uma mediação sócioanalítica.[46]

A América Latina, na década de 1950, havia sido influenciada pelos Estados Unidos. Em vários países foi implantada a visão desenvolvimentista, que se baseava no incentivo de poupança capaz de gerar um capital acumulado que, investido em setores produtivos, seria capaz de gerar aumento do Produto Interno Bruto. Na falta de capital suficiente, ele deveria ser buscado fora do país. Dentre outros mentores dessas articulações, estão o Banco Interamericano para o Desenvolvimento (BID), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Comitê Econômico das Nações Unidas para a América Latina (CEPAL).[47]

Em contraposição a essa concepção desenvolvimentista surgiram diferentes interpretações da realidade social; em especial, podem ser destacadas as produções teóricas de Celso Furtado, Theotônio dos Santos, Fernando Henrique Cardoso, Enzo Falleto e Rui Mauro Marine. Esses são os chamados precursores da teoria da dependência.

A análise de conjuntura dos teólogos da libertação foi feita com o instrumental marxista, no qual a sociedade é vista por intermédio das relações dialéticas entre opressores e oprimidos, dominadores e dominados. Jung Mo Sung afirma:

Frente a alguns que pudessem ver na teoria da dependência um pensamento desvinculado do marxismo, situando-a dentro do estruturalismo, Gutierrez já esclarecia que “só a análise de classes permitirá ver o que está realmente em jogo na oposição entre países oprimidos e povos dominantes. (...) Por isso a teoria da dependência equivocaria seu caminho e levaria ao engano se não situasse sua análise no marco da luta de classes que se desenrola em nível mundial.[48]

Para o desenvolvimento da TdL, havia uma necessidade vital da ciência sociológica para a realização completa de sua tarefa: a “libertação dos oprimidos”. Todavia, Alfonso Garcia Rubio ressalta que a sociologia funcionalista não pode ajudar, dado que evita metodologicamente as questões para as quais a TdL busca uma base científica. Para ele, o marxismo pretende “evidenciar a mentira social” e, para isso, elaborou um instrumental analítico científico. Em sua opinião, o cristão deve “regozijar-se” e “alegrar-se” com o fato desse instrumental ser empregado também para manifestar a “ideologização da própria Igreja” e da reflexão teológica.[49]

Diante da realidade social (pobreza e opressão) vivida na América Latina – no contexto do surgimento da TdL –, Michael Löwy destaca que o marxismo “aparece aos olhos dos teólogos como a explicação mais sistemática, coerente e global das causas da pobreza”, sendo também a única proposição “suficientemente radical” para a sua abolição. A luta pelos pobres sempre foi uma tradição milenar da Igreja, que remonta, inclusive, às origens do cristianismo. Sendo assim, os teólogos latino-americanos se situaram em continuidade a essa tradição que lhes serviu constantemente de referência e inspiração. Nesse sentido, o instrumental marxista não serve somente para a emancipação dos trabalhadores, mas para todos os oprimidos pelo sistema capitalista, pois quando se cunha o termo pobre, ele não se restringe somente àquele que é desprovido de bens e dinheiro, mas o termo é carregado de significações “morais, bíblicas e religiosas”.[50]

O emprego da análise marxista em luta de classes não foi usado na TdL somente como instrumento de análise, mas como guia para a ação, ao passo que se torna uma peça essencial para a chamada Nova Igreja dos pobres.[51]

O teólogo da libertação, de acordo com Luigi Bordin, ao pensar sua teologia, deve ter uma “clara consciência” de seu lugar social, o mesmo precisa partir da opção prática “ético-política” das classes dominadas. Feito isso, evidencia-se a necessidade de uma análise adequada da realidade social. Nesse ponto o marxismo se faz importante, pois, ainda segundo o mesmo autor, a opção pelos pobres, em si, não garante a qualidade de análise. Esta tem que ser feita com a utilização de um instrumental adequado, a mostrar, principalmente, “os mecanismos geradores da pobreza e os caminhos que levam à libertação”.[52]

A escolha de uma teoria social adequada pode ser feita a partir de duas ordens de critérios, a saber, os critérios científicos e os éticos. No que tange aos critérios científicos, a teoria escolhida deve ser a mais explicativa; já no que diz respeito aos critérios éticos, o determinante são os valores que parecem mais adequados em face do próprio projeto de vida e da própria opção política.
Na medida em que parte da opção pelos pobres e pela classe operária, a TdL considera “mais coerente e mais adequada a análise marxista”, pois é no bojo do projeto histórico que essa análise “surge para os movimentos populares”. Tal análise se revela importante para a compreensão dos “mecanismos de opressão da ordem social imperante”, pois o que os explorados sociais questionam é o sistema, uma vez que não seria possível viver e pensar a fé desvinculada desse questionamento[53].

Bordin ainda destaca que, depois da análise científica da realidade, necessita-se de um segundo estágio, que é “interpretá-la teologicamente”; isso se dá à luz da “fé e da Bíblia”. Tem-se, então, a necessidade da interpretação do texto – hermenêutica –, uma vez que a Palavra de Deus “não se encontra nem na letra da Escritura nem no espírito da comunidade auditora, mas entre os dois, em relação mútua dinâmica, nesse movimento de vaivém nunca perfeitamente objetável”[54].

No que se refere à Teologia da Libertação, é importante captar a articulação entre os dois momentos – o sócioanalítico e o hermenêutico. Depois do primeiro momento, em que a análise científica decodifica criticamente a realidade, intervém o momento em que esta mesma realidade é interpretada teologicamente, isto é, à luz da fé e da Palavra de Deus testemunhada nas Escrituras. “Trata-se de uma verdadeira prática teórica mediante a qual se produzem conhecimentos teológicos: há uma matéria-prima (realidade decifrada analiticamente) sobre a qual se aplicam instrumentos teóricos (categorias teológicas) que transformam num produto teológico (leitura teológica da realidade social).[55]

A partir disso, pode-se compreender como a TdL busca a articulação com a realidade e propõe a superação da mesma por meio das reflexões ancoradas na fé e com a mediação das ciências sociais.

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Notas:
[1] Teóricos como Ruy Mauro Marini e Theotônio dos Santos, debruçaram-se em debater criticamente os principais elementos elaborados pela CEPAL (Comitê Econômico para as Nações Unidas da América Latina) de que o desenvolvimento na América Latina se daria pela industrialização. Baseados no materialismo dialético e histórico procuravam explicar o caráter e permanente do desenvolvimento capitalista desigual, que era baseado, sobretudo, na superexploração do trabalho. Ver: TRANSPADINI, Roberta; STÉDILE, João Pedro. Ruy Mauro Marini: vida e obra. São Paulo: Expressão popular, 1995, p. 28 e 29.
[2] HOBSBAWM, Eric J. Era dos extremos: o breve século XX: 1914 -1991. Trad. Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia da Letras, 1995, p. 400.
[3] Um dos exemplos que podem ser citados nesse ponto é o famoso “caça às bruxas”, idealizado pelo senador McCarthy. Também conhecido como McCarthysmo, a campanha antissocialista tinha o intuito de erradicar toda e qualquer ameaça comunista.
[4] HOBSBAWM, 1995, p. 427.
[5] FERNANDES, Florestan. Da guerrilha ao socialismo: a revolução cubana. São Paulo: T.A. Queiroz, 1979, p. 4.
[6] Ibid., p. 10.
[7] Ibid., p. 89.
[8] Essa posição só foi definida em abril de 1961.
[9] Florestan Fernandes trata da Revolução Cubana com exemplo de tomada de posição frente aos interesses capitalistas a ser seguido pelos países latino-americanos.
[10] HOBSBAWM, 1995, p. 429.
[11] Caio Prado Júnior entende por burguesia a maioria dos representantes dessa classe. O autor admite que alguns representantes individuais dela podem ter discordado da forma com que se negociava com o capital estrangeiro, entrado em conflito com tais interesses, mas, de forma geral, analisa que tais atitudes não passaram de setores isolados sem expressão relevante frente toda a classe.
[12] PRADO JÚNIOR, Caio. A revolução brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 120.
[13] Ibid., p. 121.
[14] Para Caio Prado o conceito sociológico de burguesia nacional não pode ser aplicado à burguesia brasileira.
[15] GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Trad. Galeano Freitas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983, p. 14.
[16] Para Dussel, a expressão “descobrimento” deve ser substituída por “encobrimento”, uma vez que as investidas européias na América Latina foram sempre no intuito de encobrir o que aqui se achou (costumes, povos, culturas, etc.). Nesse sentido, desenvolve sua teoria criticando o pensamento eurocêntrico e a noção de Modernidade a partir das chamadas Grandes Navegações.
[17] DUSSEL, Enrique. Mil quatrocentos e noventa e dois: o encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade. Trad. Jaime A. Clasen. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 23.
[18] GALEANO, 1983, 200.
[19] Ibid., p. 260.
[20] Idem.
[21] Ibid., p. 261.
[22] HOBSBAWM, 1995, p. 431.
[23] HOBSBAWM, 1995, p. 431.
[24] Idem.
[25] Idem.
[26] HOBSBAWM, 1995, p. 438 e 439.
[27] FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: EDUSP, 2008, p. 443.
[28] GOHN, Maria da Glória. História dos movimentos e lutas sociais: a construção da cidadania dos brasileiros. São Paulo, Loyola, 2003, p. 101.
[29] FAUSTO, 2008, p. 446.
[30] GOHN, 2003, p. 96.
[31] Uma das lideranças, que ganhou projeção nacional tendo sido formada politicamente por essas iniciativas da Igreja Católica, foi o frei dominicano Carlos Alberto Libânio, conhecido popularmente como Frei Betto.
[32] FAUSTO, 2008, p. 452.
[33] Fundada em agosto de 1949.
[34] BOFF, Clodovis; BOFF, Leonardo. Como fazer teologia da libertação. Petrópolis: Vozes, 1989, p. 110.
[35] TEIXEIRA, Faustino; DIAS, Zwinglio Mota. Ecumenismo e dialogo inter-religioso: a arte do possível. Aparecida, SP: Editora Santuário, 2008, p. 64.
[36] Idem.
[37] Ibid., p. 65.
[38] CUNHA, Carlos. Conferência do Nordeste: um aperitivo. Contexto Pastoral. Campinas: CEBEP/CEDI. n. 8, junho de 1992, p.2, caderno debate, p. 2.
[39] Sobre as transformações eclesiais a partir do Concílio Vaticano II existe uma vasta bibliografia. Para uma melhor interpretação desta temática, veja: PALÁCIO, Carlos. A identidade problemática: em torno do mal-estar cristão, em Perspectiva Teológica, 21 (1989) 151-177.
[40] BOFF, C.; BOFF, L., 1989, p. 111 e 112.
[41] RIBEIRO, Cláudio de Oliveira. A Teologia da Libertação morreu? Um panorama da Teologia Latino-Americana da Libertação e questões para aprofundar o debate teológico na entrada do milênio. Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis: Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil, v. 250, n. 63, 2003, p. 323-324.
[42] Nessa obra o autor sistematiza a partir de um ponto de vista teológico as experiências de libertação vividas na América Latina. É, sobretudo, nesse trabalho que ficou consagrado o método ver-julgar-agir.
[43] RIBEIRO, 2003, p. 324.
[44] Idem.
[45] Ibid., p. 327.
[46] MO SUNG, Jung. Teologia e economia: repensando a teologia da libertação e utopias. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 94.
[47] RIBEIRO, 2003, p. 327.
[48] MO SUNG, 1994, p. 96.
[49] GARCIA RUBIO, Alfonso. Teologia da libertação: política ou profetismo? Visão panorâmica e crítica da teologia política latino-americana. São Paulo: Loyola, 1977, p. 225.
[50] LÖWY, Michael. Marxismo e teologia da libertação. Trad. Myrian Veras Baptista. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1991, p. 95 e 96.
[51] Ibid., p. 97.
[52] BORDIN, Luigi. Marxismo e teologia da libertação. Rio de Janeiro: Dois Pontos, 1987, p. 73.
[53] BORDIN, 1987, p. 74.
[54] Ibid., p. 75.
[55] Idem.

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