Marielle e a dominação erótica: reflexões a partir da Filosofia da Libertação


O caso da vereadora assassinada Marielle Franco leva, inevitavelmente, a uma reflexão filosófica entre o masculino e o feminino dentro do espaço político do Brasil e da América Latina, de forma geral. As reflexões políticas de Enrique Dussel nos ajudam a pensar a relação que a sociedade machista patriarcal, impulsionada pela obsessão fálica pelo poder, estabelece em relação ao outro sempre na perspectiva de aniquilá-lo ou utilizar-se dele como instrumento para determinado fim.
A erótica na compreensão do filósofo argentino Enrique Dussel diz respeito à relação de afetividade entre corpos, majoritariamente entre homem e mulher. O filósofo problematiza tal relação apontando para seu caráter totalizador, uma vez que, o ser feminino (foi e) é tratado como o mesmo diante do masculino, não tendo com isso sua alteridade e condição de outro respeitadas. Para isso, propõe a problematização da relação, apontando para uma dimensão alternativa de superação.
Tem-se, a partir da dominação erótica, uma relação que não respeita a alteridade do feminino, reduzindo-a ao horizonte de o mesmo, sem levar em consideração tanto suas dimensões específicas (biológicas, antropológicas e sociais), quanto as universais (fisiológicas, existenciais e materiais) inerentes a todos os seres humanos. O que não passa, portanto, de um modelo construído na base da dominação e alienação do feminino personificado na figura do outro.
No caso de Marielle observa-se a violência por meio de armas e um suposto poder fálico de dominação, assim como, a dominação masculina, uma vez que, os acusados na cena do crime foram descritos pelas testemunhas como homens. No que podemos denominar de dominação egoica e fálica.
Grolli (2004) destaca que para Dussel a tradição Ocidental estabeleceu uma relação de injustiça do “face-a-face” erótico pois colocou a figura feminina numa relação de opressão frente ao masculino, “viabilizando uma relação de dominação do varão sobre a mulher” (GROLLI, 2004, p.78). Somente com o respeito a alteridade do feminino é que se poderá superar a relação de dominação estabelecida e justificada historicamente.
Há ainda outro componente que Avtar Brah (2006) ajuda a problematizar: a negritude. Além do caso em questão se tratar de uma violência contra a mulher. Trata-se de uma mulher negra e pobre. Brah sinaliza que há diferença quando se trata do preconceito em relação à mulher e em relação à mulher negra, pois esta última sofre duplamente por ser mulher e por ser negra. Diante de um país machista isso constitui a exterioridade da exterioridade.
Por isso Dussel pontua que a dominação erótica insere-se dentro de um contexto de exercício de poder sobre o outro e sua gênese data da conquista da América Latina. Uma vez que no processo de conquista, por exemplo, “o europeu não só dominou o índio, mas também violentou a índia” (DUSSEL, 1977a, p.89).
 Há, nesse sentido, uma dupla dominação: de submissão do outro e uma dominação fálica, ou seja, dominação do “eu conquisto” e do “ego fálico” Tais relações constituem-se em satisfação do dominador sobre o dominado – no caso em questão há investidura de poder por meio do Estado. Como não há certeza que foram agentes do Estado (ainda que por meio de um poder paralelo) que mataram a vereadora não se pode afirmar que o desejo de conquista tinha o aval do mesmo. "No caso da mulher latino-americana essa dominação aplica-se em diversas dimensões uma vez que é “violada por ser uma cultura e nação oprimida, por ser membro de uma classe dominada, por ser mãe de sexo violentado” "(DUSSEL, 1977a, p.90).
A justificativa de dominação tem em Freud seus maiores expoentes. Ao analisar a proposta freudiana, Dussel tece diversas críticas à maneira de se conceber a relação masculino-feminino. Uma vez que na concepção freudiana o masculino compreende o sujeito, a atividade a e posse do falo. O feminino é determinado como objeto de passividade. Nesse sentido a relação masculino-feminino do horizonte da totalidade é estabelecida a partir do “ego fálico”. Qual é o problema disso? A subjugação do feminino. Para Dussel esse sistema faz com que o feminino seja passivo “delimitado enquanto não-eu; não falo [...] À mulher cabe a posição de dominada e reduzida ao não-ser diante da “totalidade masculina”.(DUSSEL, 1977e, p.74).
Tem-se com isso a dominação e justificação do domínio do feminino dentro da dinâmica da sociedade patriarcal construída a partir de conceitos como a dominação fálica de Freud, por exemplo. Tal postura é sustentáculo da totalidade excludente que não leva em conta a alteridade do feminino e sua condição de outro frente ao sistema.
Por que a problematização erótica e sua consequente libertação se fazem necessárias? Por que sem isso abre-se precedente de um estado de guerra que  opõe todos contra todos e a ruptura com  a hegemonia de poder representada pelo masculino. Pansarelli  salienta que “[...] a configuração atual da sociedade propõe o masculino como ser e o feminino como ente e uxoricídio como negação da alteridade do outro e sua condenação ao mesmo (PANSARELLI, 2010, p.173).Somente com o rompimento da lógica de dominação do masculino sobre o feminino é que se pode libertar ambos.
Por onde se deve partir a libertação? Do respeito à alteridade e redefinição dos papéis dentro da dinâmica da totalidade. Como Salienta Grolli: “Assim, partindo da necessidade de redefiniçao dos papéis, consideramos que a ruptura da opressão vai-se processando na medida em que mulher/varão, frente-a-frente vão se descobrindo sua identidade pela distinção de que são portadores” (GROLLI, 2004, p.162). Trata-se, portanto, de uma relação complementar em que ambos os lados contribuem para a libertação e construção de uma relação que privilegie a dinâmica da alteridade.
Dussel assim propõe a libertação no que tange a erótica:
 A libertação do éros se realiza pela libertação da mulher, o que permitirá ao homem recuperar parte da sensibilidade perdida na ideologia machista. Libertação do antigo patriarcalismo (que já os indoeuropeus e semitas transmitiam milenarmente), libertação da mulher definida desde sempre como castrada, como não-falo. È necessário começar de novo (DUSSEL, 1977a, p.90).
Sendo assim trata-se de uma libertação complementar que na medida em que propõe uma nova dinâmica social visa redefinir os conceitos e os papéis sociais tanto da figura masculina, quanto da figura feminina.
O caso de Marielle nos ajuda a pensar a relação que devemos estabelecer entre a totalidade e a exterioridade, perpassando o respeito à alteridade. Muito mais do que divisões políticas e partidárias o caso nos deve despertar a reflexão de como devemos lidar com as liberdades individuas, os direitos humanos a interpelação que vem de fora do nosso sistema e nos coloca em “xeque”.
Dussel, ainda nos anos 1970, já denunciava o machismo totalizador da sociedade latino-americana. Machismo esse datado das origens de dominação de nosso povo. Historicamente a mulher é subjugada, expropriada e aviltada em sua dignidade. Muito disso se deve a omissão do Estado e da sociedade, de maneira geral. Por esse e por outros motivos que devemos pensar a partir de nosso lócus, que para a maioria da população está na exterioridade.

Marielle presente!

Referências:

BRAH, Avtar. Diferença, diversidade, diferenciação, Cadernos Pagu 26, p.329-365, 2006.
DUSSEL, Enrique. Para uma ética da libertação latino-americana I: acesso ao ponto de partida da ética. Loyola: São Paulo, 1977 (c);
_______. Para uma ética da libertação latino-americana II: eticidade e moralidade. Loyola: São Paulo, 1977 (d);
_______. Para uma ética da libertação latino-americana III: erótica e pedagógica. Loyola: São Paulo, 1977 (e);
_______. Para uma ética da libertação latino-americana IV: política. Loyola: São Paulo, 1977 (f);

GROLLI, Dorilda. Alteridade e Feminino. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2004.

PANSARELLI, Daniel.Filosofia e práxis na América Latina: contribuições à filosofia contemporânea a partir de Enrique Dussel, 2010. Tese de doutorado em filosofia. São Paulo. Universidade de São Paulo.

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