Dias melhores para hoje: teologia e cultura

Escatologia: em busca de uma definição...


Na teologia sistemática cristã existem diversos temas que são essenciais. Podemos citar, como exemplo, a pneumatologia, eclesiologia, cristologia e a escatologia. Este último desponta como um dos principais e mais controversos temas. Isso porque, ao longo da história do pensamento cristão, ele foi tomando diferentes proporções e atingindo diferentes conotações.

A escatologia, já em sua etimologia, tem sua definição como coisas últimas, podendo ser interpretada numa linguagem teológica como teologia das últimas coisas. A palavra se constitui de dois vocábulos gregos, eschatós (último) e lógos (palavra). 

Timóteo Carriker trata do termo como parte da teologia que trata das “últimas coisas” (CARRIKER, 2008, p.360), ou seja, refere-se tanto aos eventos finais da história, como ao destino final das pessoas. Ainda, segundo o mesmo autor, a escatologia pode se referir à consumação dos propósitos de Deus, coincidindo ou não com o término do mundo.

Carriker (2008) assegura que o alicerce da escatologia do Novo Testamento pode ser encontrado nas promessas feitas aos patriarcas e os outros nomes de expressão do Antigo Testamento, sendo relembradas ao longo da história de Israel. Em sua concepção, tal alicerce se compõe de algumas características que constituem premissas básicas para a compreensão escatológica. O autor salienta que a escatologia não pode se desvincular da esperança, da direção ao futuro e das promessas de Deus.

A concepção de Carriker é de que, no Novo Testamento, os planos de Deus são para toda a humanidade e que tais planos se convergem na vida, na morte e na ressurreição de Jesus Cristo. Dessa maneira, pode-se resumir que, para o autor, Jesus Cristo é a esperança da humanidade. Não obstante, podemos observar que, para Carriker, a escatologia compreende um conceito coletivo, uma vez que, toda a humanidade está inserida nesse processo.

Franklin Ferreira e Alan Myatt entendem que escatologia também trata das questões do fim, do plano de Deus, da consumação da história que se move para um fim determinado (teleológico). Na concepção dos autores, a escatologia embora trate do fim pode ser compartimentalizada, dividindo-se em partes distintas. “O objeto de estudo da escatologia está diretamente relacionado ao futuro da raça humana, da criação e de cada pessoa individualmente” (FERREIRA; MYATT, 2007, p. 1012). Há, nessa abordagem, uma sistematização no que tange à temática da escatologia.

A ideia é de que o tema pode ser trabalhado de diversas maneiras. Autores como Leonardo Boff e Marcelo Barros incluem, em sua abordagem, por exemplo, o cosmos, outros já ignoram esse aspecto; uns tratam da escatologia como algo ligado ao coletivo, outros concentram seu foco no indivíduo, entretanto a definição clássica seria mesmo de um discurso, ou interpretação sobre o fim das coisas ou de uma era (éon).

Escatologia da esperança


Jürgen Moltmann, ao tratar de escatologia, faz uma critica a forma com que o tema foi tratado ao longo da história da Igreja. Para ele, a concepção de que os acontecimentos finais irromperiam de fora para dentro da história, pondo fim à “história universal” e terem sido sempre adiados para um último dia fez com que os mesmos perdessem seu sentido crítico. Isso fez com que a doutrina do fim último não tivesse a “devida importância na dogmática cristã” (MOLTMANN, 1971, p.3).

Em Teologia da Esperança (1971) o autor defende que com o passar dos anos, o enfoque na escatologia ficou relegado aos grupos cristãos extremistas e a fé cristã foi se ocupando de tratar da temática da vida futura, atendo-se, sobretudo, às questões “do futuro no além”, ou na eternidade. Apesar de os textos bíblicos tratarem da esperança messiânica futura para a terra, a questão da esperança não foi trabalhada da devida forma na Igreja.

Moltmann trabalha a escatologia de forma muito peculiar. Para ele o termo lógos refere se a uma realidade que existe e que pode ser como verdade na palavra que lhe corresponde. Sendo assim, não pode haver lógos no futuro, a não ser que esse futuro tenha uma forte relação com o presente. 

O autor é conhecido como “teólogo da esperança” e defende que a escatologia é o cerne da fé cristã, uma vez que, toda a mensagem cristã é orientada por ela. Para Moltmann, esse tema é essencial à existência cristã, assim como, à totalidade da Igreja. Dessa maneira, a escatologia cristã mesclaria quatro elementos: presente, futuro, experiência e esperança. Devido à relação desses quatro elementos, o ser humano é impelido a pensar no futuro a partir do presente por meio do conflito entre a experiência e a esperança. Nesse caso, a experiência estaria ligada às situações do presente e a esperança às projeções do futuro.

A fundamentação sobre “teologia da esperança” se dá, sobretudo, no Novo Testamento. Dessa maneira em todo o Novo Testamento, a esperança cristã se dirige para um horizonte não visível. Isso faz com que a experiência do visível (presente) seja concebida como "algo a ser superado por meio da esperança" (MOLTMANN, 1971, p.5).

De acordo com essa perspectiva, a esperança aparece como algo baseado na ressurreição – conceito que pode ser concebido como superação da morte – e sua verdade é demonstrada pelo conflito existente entre o presente e o futuro por ela visualizado. O futuro pressupõe, nesse caso, a supremacia da justiça contra o pecado, a vitória da vida sobre a morte, a hegemonia da paz contra a divisão (MOLTMANN, 1971).  

O “teólogo da esperança” afirma que há uma contradição entre as situações de conflito vividas no presente e o futuro escatológico, e que, por isso, a esperança tem a função de superar a situação caótica.

É nessa contradição que a esperança deve mostrar sua força. Por isso mesmo a escatologia não deve pairar na distância, mas formular suas afirmações de esperança, contradizendo o presente experimentado, presente de sofrimento, do mal e da morte. Por esta razão será sempre difícil elaborar uma escatologia por si mesma. Muito mais frutuoso é apresentar a esperança como fundamento e a mola mestra do pensamento teológico em geral, e introduzir as perspectivas escatológicas nas afirmações sobre a revelação de Deus, sobre a Ressurreição de Cristo, sobre a missão da fé e sobre a história (MOLTMANN, 1971, p.6).

Podemos então compreender que, para Jürgen Moltmann, a escatologia cristã se constitui na esperança de superação futura dos dilemas do presente, o que já é um avanço em relação a ideia que vigorou por anos no pensamento cristão de que a escatologia estaria relacionada apenas aos elementos do “fim do mundo”, pois na perspectiva apresentada por Moltmann há possibilidade da realização escatológica no tempo presente.

Teologia e cultura


Para tratar do tema teologia e cultura, utilizaremos o texto de Carlos Eduardo Brandão Calvani, Teologia e MPB (1998). Tal escolha se justifica pelo fato de o autor abordar a teologia a partir de referências da teologia da cultura e fazer relação da mesma com algumas canções da MPB. Um dos autores mais citados por ele em sua obra é o teólogo Paul Tillich.
Paul Tillich foi um dos mais destacados teólogos do século XX, que ficou conhecido, sobretudo, por seus estudos na área de teologia sistemática. Por volta de 1919, quando assumiu uma cátedra na Universidade de Berlim, lançou seu projeto de teologia da cultura.

Calvani dedica-se a analisar algumas canções da MPB. Para isso, faz uma abordagem da chamada teologia da cultura. Para Calvani a proposta de Tillich em analisar a cultura remonta à década de 20 do século passado período histórico que Tillich escolheu para analisar a cultura nas diversas áreas da sociedade. 

A intenção de Tillich era fazer com que os leitores compreendessem que os movimentos não religiosos também davam testemunho do Incondicional. Sendo assim, caberia à teologia da cultura auxiliar na identificação de quais elementos da expressão cultural dão testemunho espiritual de cada tempo. Calvani menciona que, na última palestra sobre arte proferida na Universidade da Califórnia em 1965, "Paul Tillich utiliza o termo dimensão para relacionar religião e arte" (CALVANI, 1998, p.94).

Tal pressuposto leva-nos a compreender que, para Tillich, todas as manifestações culturais trazem consigo uma manifestação religiosa. Uma vez que o termo dimensão insere a vida religiosa em todos os compartimentos da cultura, oferecendo, dessa maneira, a oportunidade de conceber a religião como algo sempre presente e que dialoga com todos os setores da cultura. Para o autor

Religião não é apenas a vivência espiritual organizada em torno de ritos, crenças e devoções, mas o estado de ser capturado e envolvido por uma preocupação suprema, de ordem Incondicional, que abala existencialmente o ser humano e sua cultura. Religião, então, tem a ver com uma condição em que nos encontramos tomados por algo que vem de fora de nós mesmos que reclama de nós uma resposta definitiva (CALVANI, 1988, p.94-95).

Na concepção de Calvani, toda a criação cultural tem necessariamente um significado religioso, uma vez que, ela é nascida de uma posição assumida diante do Incondicional, ainda que o posicionamento seja da negação ou indiferença diante dele.

Teologia e MPB é um dos mais completos textos sobre teologia da cultura (e de teologia e cultura) já produzidos. Calvani analisa composições de Raul Seixas, Gilberto Gil, Renato Russo e suas respectivas interações culturais. A abordagem é rica e precisa propicia à revisão de conceitos e ampliação de horizontes teológicos. 

Escatologia e esperança na música “Dias melhores”.


A música Dias melhores é de autoria de Rogério Flausino, integrantre do grupo Jota Quest. Jota Quest é uma banda de rock mineira, formada na capital do estado, no ano de 1993. O nome Jota Quest é inspirado no desenho animado Jonny Quest. A banda é formada por cinco integrantes. O baixista Paulo Diniz Júnior (PJ), o baterista Paulinho Fonseca, o guitarrista Marco Túlio Lara, o tecladista Márcio Buzelin e o vocalista Rogério Flausino. Em seu repertório, há músicas variadas, que vão desde canções mais agitadas a músicas românticas.

A canção Dias Melhores foi escolhida por que trata de um tema da escatologia, esperança, em uma música secular. Como a música enquadra-se no quesito cultura, utilizaremos novamente a obra de Calvani para abordar a temática.

Calvani, em sua pesquisa, classifica a música em vários modelos. Um desses modelos adapta-se perfeitamente ao nosso objeto de estudo. Estamos falando “do tema religioso em estilo não-religioso” (CALVANI, 1998, p.101). Como vimos no tópico teologia e cultura, Calvani usa como referencial a teologia de Paul Tillich, que concebe a cultura como criação diante do Incondicinal.

A temática de Dias melhores gira em torno da esperança. Vejamos a letra:


Vivemos esperando
Dias melhores
Dias de paz, dias a mais
Dias que não deixaremos
Para trás
Oh! Oh! Oh! Oh!...
Vivemos esperando
O dia em que
Seremos melhores
(Melhores! Melhores!)
Melhores no amor
Melhores na dor
Melhores em tudo
Oh! Oh! Oh!...
Vivemos esperando
O dia em que seremos
Para sempre
Vivemos esperando
Oh! Oh! Oh!
Dias melhores prá sempre
Dias melhores prá sempre
(Prá sempre!)...

Nota-se que, apesar de não ser uma música cristã, o tema da esperança escatológica sobressai. Tal esperança liga-se à concepção de Moltmann por se tratar de algo que entra em contradição com a situação do presente – embora não esteja explícito na letra – e projeta o futuro a partir da realidade vivida.

Fernando Alberto Róldan (2002) fala de uma escatologia construída historicamente, a partir da vida cotidiana. Para isso, cita o exemplo da música Apesar de você, de Chico Buarque de Holanda. 

Esse mesmo exemplo pode ser usado na análise de Dias melhores, uma vez que, ambas as canções tratam da construção de um futuro melhor a partir dos dilemas vividos no cotidiano. O contexto de ambas as músicas propõem uma irrupção da esperança frente à realidade.
Quando na canção é mencionado: 

Vivemos esperando
Dias melhores
Dias de paz, dias a mais
Dias que não deixaremos
Para trás.

Trata-se de uma esperança que pressupõe a fé. Esse pensamento corrobora a ideia de Moltmann (1971) em que a esperança é intrínseca à fé. E, nesse sentido, a esperança nada mais é do que a espera pelas coisas conforme uma convicção de fé. No caso da canção, a fé é de que dias melhores virão.

O sentido de fé está posto nesse contexto como a capacidade de transcender. Nas palavras de Moltmann, significaria “estar em êxodo” (MOLTMANN, 1971, p.6), pois, em sua concepção, a fé tem a  capacidade de transcender a realidade, não se refugiando no céu, nem numa mera utopia, mas transcender a realidade e construir o futuro a partir do presente, ou seja, sai de si para encontra-se com outrem dentro da dinâmica existencial e histórica.

Outro ponto em que a música corrobora o pensamento de Moltmann é no que tange à promessa divina. O cristianismo, por muitos anos, viveu sob a ideia de Reino de Deus somente no futuro. A escatologia de Moltmann, juntamente com sua ideia de promessa, faz-nos acreditar que os sinais do Reino de Deus, ou seja, da promessa de Deus, podem ser vividos no tempo presente. 

A canção, quando aborda essa temática da fé em dias melhores, a faz na convicção de que, quando esse tempo se realizar, os seres humanos aproveitarão da melhor forma possível, pois parte do pressuposto de que o anseio de todos por uma vida melhor será realizado e que a felicidade das pessoas irromperá com isso. Pode ser observada essa tônica quando o autor da música afirma: dias que não deixaremos para trás. Trata-se, portanto, de uma esperança que corresponde aos anseios da realidade vivida no presente.

Moltmann afirma que a esperança está intimamente ligada à realidade:

Somente a esperança é “realista”, porque somente ele toma a sério as possibilidades que empregnam tudo o que é real. Ele não toma as coisas como sua estática ou suas possibilidades. Somente quando o mundo e os homens são vistos num estado inacabado de fragmentação e experimentação, as esperanças terrenas têm algum sentido. Elas antecipam as possibilidades da realidade histórica, móvel e decidem dos processos históricos pela sua ação. Por isso, esperanças e antecipações do futuro não são luz que ilumina uma realidade já decrépita, mas percepções realistas do horizonte do real possível, as quais põem tudo em movimento e o conservam em estado de mutabilidade (MOLTMANN, 1971, p.13).

Dessa maneira, podemos compreender que a temática da esperança, predominante na canção, trata-se de algo que é construído à partir da realidade (presente) e aponta para o futuro construído partindo das relações do presente.

Outro ponto de destaque na canção é a frase: Dias melhores para sempre. Tal ideia gera uma interpretação de Reino de Deus na Terra, ou até uma noção de um Paraíso terrestre. Porém não se pode afirmar que é isso que a canção quer expressar.

A noção de dias melhores para sempre faz correspondência com a escatologia e esperança, quando incute a noção de que a construção do futuro escatológico pode expressar-se na superação dos conflitos do presente, o que implicaria num futuro melhor.

Essa noção reforça a ideia de Moltmann de uma escatologia que se realiza dentro da história humana e não para além da mesma. A felicidade e a escatologia podem ser construídas na história.

Com isso, podemos entender que, embora a música não seja enquadrada no perfil de canções religiosas (CALVANI, 1998), trata de um tema cristão: a esperança. Esperança essa que visa a superação dos conflitos do presente e tem como fator norteador os dias melhores.

É interessante notar como as coisas que entrelaçam e convergem para a transcendência e estímulo à esperança e rompimento de situações hostis do cotidiano. A proposta de Tillich, descrita por Calvani de que a cultura aponta para o Incondicional além de ser inovadora e ousada é alentadora, pois revela uma dimensão existencial inestimável.

A teologia está aí para nos ensinar que “o vento é livre” não se pode conter seu ímpeto e sua “rebeldia”. Quem disse que o sagrado é propriedade exclusiva da religião? A esperança irrompe de lugares inimagináveis e a transcendência liga-se ao cotidiano com uma sutileza e doçura que não pode ser contida em dogmas e tratados teológicos. 

A beleza do sagrado mais uma vez se manifesta no humano e abre possibilidades de realizações concretas na história do humano em sua dimensão empírica  do presente, rompendo com a lógica “escapista” e docetista que predominou durante séculos no seio cristão. A esperança se faz hoje. A transcendência se mostra no sair de si para encontrar o outro em sua dimensão existencial.



REFERÊNCIAS:


CALVANI, Carlos Eduardo Brandão. Teologia e MPB. São Paulo: Loyola, 1998.

CARRIKER, Timóteo. Dicionário Brasileiro de Teologia. São Paulo: ASTE, 2008.

FERREIRA, Franklin; MYATT, Alan. Teologia sistemática: uma análise histórica, bíblica e apologética para o contexto atual. São Paulo: Vida Nova, 2007.

MOLTMANN, Jurgen. Teologia da esperança: estudos sobre os fundamentos e as consequências de uma escatologia cristã. São Paulo: Herder, 1971.

ROLDÁN, Alberto Fernando. Escatologia: una visión integral desde América Latina. Buenos Aires: kairós Ediciones, 2002.

Comentários

  1. Olá. Encontrei o link de seu blog em um comentário seu no facebook de um amigo. Apreciei estes textos. Fui aluno do prof. CALVANI em Londrina, PR, em 1994...

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