A integralidade do ser humano na concepção bíblica
Introdução
Tema controverso e que desperta as mais diferentes paixões é a questão do ser humano e sua concepção segundo a Bíblia. Há um debate intenso em torno do assunto. Entre as correntes que divergem estão os dicotomistas[1] e tricotomistas[2], cada um fundamentando suas posições em intermináveis versículos bíblicos e elucubrações teológicas dos mais iminentes teólogos. A disputa é bem ampla cabendo sempre mais correntes para discutir. Entram também em cena os holísticos[3] e os chamados tenopschiritas[4], que compreendem homem bíblico de forma integral, não cedendo espaço para a noção de alma fora do corpo. Certamente essa breve reflexão não tem pretensão de esgotar a temática, mas visa apontar possíveis caminhos para pensar a concepção de ser humano à luz da Bíblia.
Corporeidade e fé
A corporeidade corresponde à forma que o ser humano se apresenta em sua forma unitária (corpo, alma e espírito) e sua relação concreta com o universo cotidiano, abarcando as diversas esferas de prazer e convivência. A proposta dualista não consegue tratar da corporeidade, o prazer,a satisfação e, até mesmo, a fé sem desprezar o corpo, colocando-o numa posição inferior em relação à alma, uma vez que, considera-o como espaço para as satisfações das paixões (patias) humanas – degeneradoras das virtudes humanas – não contribuindo assim para a elevação da alma e, consequentemente, dos valores espirituais.
Na dimensão da fé a corporeidade se apresenta a partir da compreensão de que o aperfeiçoamento espiritual se faz em conexão com a matéria (corpo). A alma e o espírito agem em conjunto, corroborando com o crescimento e elevação espiritual. Essa afirmação é necessária, pelo fato de que, para se fazer teologia e falar da espiritualidade, o ponto de partida é o ser humano em sua concretude real.
Garcia Rubio atenta para a necessidade de tratar a teologia a partir do humano e suas demandas, pois não há possibilidade de se falar de Deus, sem levar em conta a materialidade humana, visto que, este é o receptáculo da graça divina e mediação das relações com seu criador (RUBIO, 2006).
Ao longo da história da fé cristã muitas foram as influencias que tentaram negar a importância da corporeidade para a salvação. Entre as diversas correntes destaca-se a docetista[5], constituindo na forma mais radical de negação da corporeidade. Tanto a salvação, quanto a espiritualidade não podem, de forma alguma, ser dissociadas. O ser humano, assim, é um corpo que necessita ser cuidado para gozar de uma relação ampla e intensa com Deus.
Cada ser humano é uma unidade pessoal, um sujeito único. Corporeidade e espiritualidade não são duas partes justapostas, mas duas dimensões inter-relacionadas que designam a pessoa humana na sua totalidade. No ser humano, o espírito se corporifica, enquanto o corpo se espiritualiza. A perfeição do ser humano não consiste em desenvolver o espírito em detrimento do corpo ou em cultivar o corpo à custa da espiritualidade. São tendências dualistas que mutilam e empobrecem. Quando o espírito é valorizado à custa do corpo, a comunicação se empobrece, uma vez que ela só se realiza mediante a corporeidade. Quando o corpo é valorizado em detrimento do espírito, a abertura ao transcendente fica empobrecida, com o risco trágico da redução do homem a animal (RUBIO, 2006, p. 45-46).
A partir dessa premissa que trata da corporeidade como fator fundamental na relação do ser humano com sua fé, o próximo passo é entender como esse corpo se relaciona com Deus e se apresenta nos dois Testamentos da escritura sagrada. De forma suscita veremos como se divide as dimensões do ser humano.
O ser humano integral no Antigo Testamento
Para melhor tratar a questão é inevitável uma rápida incursão pela história da religião de Israel e sua constituição como base para a fé cristã. Um dos mais notáveis estudiosos do Antigo Testamento foi George Forher. Esse teólogo escreveu A história da religião de Israel (1992), em que defende uma tese central de que a fé dos hebreus foi sendo desenvolvida ao longo se sua história e sistematizada pelos escribas, que englobavam em seus ensinos, inclusive, filosofias dos povos vizinhos. Daí tem-se, por exemplo, a reivindicação de um rei (I Sm 8), a crença na ressureição (Dn 12, 1-2; Ez 37, 1ss) e a noção de mansão dos mortos (Sl 16,10).
Embora houvesse uma sistematização no que diz respeito à concepção de fé dos hebreus, o entendimento sobre o ser humano em pouco se altera, uma vez que, a cultura semita como um todo concebe o ser humano como ser integral, isto é, com dimensões específicas, mas materializado no todo (FORHER, 1992).
Com essa premissa corrobora Enrique Dussel que tratando do Humanismo Semita (1979) salienta que um dos maiores avanços no estudo da antropologia se dá pelo “fato de que a existência humana tenha sido redescoberta não como tendo um corpo, mas como sendo um corpo” (DUSSEL, 1979, p. 20). Dessa maneira, a concepção unitária do ser humano é algo presente tanto na cultura hebreia, quanto a de outros povos semitas (hititas, uguráticos, sumérios, acádios, entre outros).
Quando se trata da relação do ser humano com Deus, no que se denomina antropologia teológica as escrituras abrem margem para algumas crenças que podem ser enquadradas como dualistas, tripartites, espirituais, etc., entretanto, analisando minuciosamente o tema concluiremos que as proposições bíblicas pendem para a questão da integralidade, ou seja, o ser humano bíblico como holístico, integral que se expressa em partes distintas. Podemos assim, mencionar as três principais categorias constituintes do ser humano no Antigo Testamento analisando-as suscintamente. São elas : ruach, nefesh e basar.
Ruach: força vital do ser integrado a seu corpo. Sopro ligado à vida do ser. Essa essência liga-se ao corpo do ser, fazendo com que esse tenha autonomia e viva sua vida em comunhão com seu criador. Trata-se, portanto, de um elo de ligação entre humano e o divino. Algo que une e faz com que a vida se sustente “ a palavra não significa o ar como tal, mas ar em movimento” (WOLFF, 1975). Esse movimento é moldado por Deus no homem (Cf. Zc 12, 1; Hab 2,19, Jr 10,14).
Nefesh: ligada à respiração, garganta, faringe, laringe (cf. Sl 69,2; Is 29,8; Jn 2,6), podendo ligar-se também ao ser concreto do eu (cf. Gn 2,7; 12,5; Lv 7,20). Ainda pode ser considerada como centro da consciência e ação do ser humano “ tratando se da pessoa viva e concreta, animada de um dinamismo básico ” (BEERNAERT, 1984, p.7).
Basar: carne, representando a temporalidade limitada do ser humano, ou o “ homem efêmero ” (WOLFF, 1975). Entendida como a manifestação concreta da nefesh. É importante lembrar que essas dimensões nunca se encontram separadas, ou seja, uma depende necessariamente da outra para existir (Cf. Lv 4, 11; 7,15-21; Nm 19,5). Aqui não há a ideia de corpo fora da alma ou vice-versa como é o caso do dualismo grego.
Esses elementos expressam o ser humano em sua concretude, isto é, na materialização de seu ser, dando sempre o caráter de integralidade. Embora em diversas passagens bíblicas estejam descritos de forma diferente, dizem respeito às dimensões internas do ser, não excetuando, com isso sua integralidade. O que inequivocamente demonstra que
A visão integrada do ser humano tem sua origem no mundo cultural semita, que, como já sabemos, é o mundo no qual a Bíblia foi sendo elaborada e escrita. De fato, na Sagrada Escritura, o ser humano é visto como uma unidade. É verdade que os termos bíblicos utilizados [...] designam aspectos do ser humanos, mas sempre referidos ao homem ou à mulher vistos sempre como unidade ( RUBIO, 2007, p.34).
A partir desse breve esboço pode-se entender que há subsídios plausíveis para se pensar a integralidade do ser humano no Antigo Testamento, rompendo com a visão dualista grega, reforçando, com isso, a noção de que não há nenhuma divisão desse ser em relação à sua vida.
A integralidade no Novo Testamento
Uma das grandes dificuldades em se entender a integralidade no Novo Testamento dá-se pelo fato de o mesmo ter sido escrito em grego. O pensamento decorrente da cultura grega, denominado de helenismo, traz uma concepção de ser humano totalmente diferente da visão semita. Para os gregos, o ser humano é dual, ou seja, tem duas essências distintas: corpo e alma. Sendo essa última aprisionada pelo corpo aguardando sua liberação para retornar ao seu mundo original: mundo sensível.
Embora a noção de dualismo tenha sido atribuída a Platão, sua origem remonta aos tempos antigos da religião grega. Dussel (1975) afirma que já em Ilíada, Homero falava de alma. Dentre as diversas concepções, o escritor grego afirmava que a alma era uma cabeça débil depois de morta. Essa noção é o germe da ideia de uma existência dupla que opõe a imagem visível e invisível do ser humano. Platão não iniciou esse pensamento dualista, mas foi, contudo, depois de sua formulação sobre corpo e alma que a influencia dualista espalhou pelo Ocidente, sobretudo, após a conquista alexandrina (DUSSEL, 1975).
Como o Novo Testamento se utiliza das categorias gregas, muitos estudiosos afirmam que o ensino contido em suas linhas expressa essa divisão (corpo x alma). É importante notar que embora se utilize o grego no ambiente neotestamentário a formulação dos pensamentos não deixam de ser semitas, em outras palavras, os judeus do primeiro século se expressam em grego, mas pensam como semitas. Essa questão é muito controversa, constituindo, inclusive, no palco de disputas entre diferentes teólogos que se debruçam sobre vários textos querendo provar suas posições teológicas.
Dentre as passagens mais polêmicas, há no evangelho de Mateus uma que abre margem para o entendimento dualista. Essa passagem encontra-se em Mt 10, 28, em que trata da morte da alma e do corpo. Sobre isso Urich Luz afirma “ o texto referenda a convicção geral de que o corpo perecerá depois da morte ” juntamente com a alma, dando sempre a noção de que estão integrados (LUZ, 2005, p.322). Há ainda a ideia implícita de que alma morre, ou dorme, juntamente com o corpo, que são lançados no γεέννῃ. (Geenei. Adp. Geena = lugar de tormento). A concepção é de que o corpo em sua integralidade sofrerá danos.
Jesus tratou da temática do corpo baseado no livro de Levítico. De acordo com o ensino levítico o corpo é o local em que se expressa de forma material a vontade de Deus. De maneira que, a santificação, envolve o processo de cuidado com o corpo. Não somente isso, mas também a salvação estaria integrada nessa dinâmica. Em muitos casos de cura a frase mencionada é “sua fé de salvou” (Mt 8, 13; Mc 8,5; Lc 7,50; 8, 48; 17,19; 18, 42).
A importância da integralidade em Jesus se expressa em sua própria encarnação. Inicialmente Deus se manifestou como dabar, palavra criadora, entretanto, essa ação, ainda que concreta, estava ligada a uma realidade abstrata. A exemplo do lógos grego, a palavra de Deus (dabar) relacionava-se mais com um mundo transcendente do que com uma realidade concreta. Por isso, a encarnação de Jesus, como filho de Deus e palavra real na vida humana, exemplifica a noção de integralidade e holisticidade contida nos ensinamentos bíblicos, uma vez que “a palavra se fez carne e habitou no meio de nós”.
Quando se trata do Novo Testamento há também dificuldades em se pensar a integralidade em Paulo, pelo fato de este pertencer ao mundo greco-romano e expressar-se nas categorias gregas. No entanto em Paulo no mundo greco-romano (SAMPLEY, 2008), há uma dica, que entendida juntamente com a Teologia do Novo Testamento de R. Bultmann (2008) auxiliam na compreensão integral do ser. As categorias que Paulo trabalha, ainda que, aparentemente independentes entre si, tratam, da relação integral do ser humano com Deus.
Naturalmente que Paulo não esboçou uma antropologia científica que descrevesse o ser humano como um fenômeno na área do mundo objetivamente perceptível. Ele vê o ser humano sempre em sua relação com Deus (BULTMANN, 2008, p.247).
Cabe-nos, portanto, uma pergunta: como se dá a relação do ser humano com Deus? De forma parcial? Somente numa dinâmica espiritual? Se o ser humano relaciona-se com Deus na totalidade de seu ser, ou na expressão paulina, somaticamente, certamente a relação de Deus com esse ser é da mesma maneira: holística, integral, somática.
Os termos psché, sôma, sarx, pnêuma, zoê e bios estão todos no horizonte da vida e sua relação integral com Deus. A soteriologia paulina dá, inclusive, passos rumando a uma espiritualidade cósmica (Cf. Rm 8,22), mostrando que a integralidade do ser humano não se extingue somente em sua relação com Deus, mas abarca ainda as questões cotidianas de sua existência, incluindo seu espaço habitado.
Por isso entende-se que Paulo trata da questão de forma a não deixar dúvida enquanto sua posição: o ser humano é integral, mas tem dimensões dentro de seu ser que são particulares. Sendo assim, não há a possibilidade de existência de nenhuma dessas dimensões destituída do soma (corpo) que é “a pessoa em seu todo” (BULTMANN, 2008, p. 251). Na concepção paulina, não há espaço para o dualismo e sim para integralidade (Rm 12,1).
As divisões existentes nas expressões paulinas, nada mais são do que formas de redação e expressão para tratar de sentimentos e realidades específicas da existência. Uma vez que, o mais importante é, de fato, a existência humana e sua relação com Deus. Por isso algumas implicações cotidianas e nuanças em relação às mesmas fazem parte dos escritos bíblicos. Esses fatores ligam-se mais à narração e expressão do que dimensões específicas do ser, propriamente ditas.
Conclusão
Em poucas linhas, procuramos mostrar a concepção do ser humano como ser integral, fruto de uma construção bíblica, que leva em conta, aspectos históricos, teológicos e sociológicos. Dessa maneira a breve exposição teve por intuito demonstrar que há uma visão holística na Bíblia e que o ser humano deve, portanto ser compreendido nessa dimensão, rompendo, assim, com a noção espiritualista dual em que o corpo e a alma são dois pólos opostos.
Isso sem dúvidas ajuda na interação do ser humano com seu espaço cotidiano levando em conta suas diversas dimensões (históricas, culturais, sociais, etc.) na construção de uma espiritualidade encarnada e comprometida com sua história.
Referências:
BEENAERT, P.M. El hombre en el lenguage bíblico: corazón, lengua y manos en la biblia. Navarra: Editorial Verbo Divino, 1984.
BULTMANN, R. Teologia do Novo Testamento. Santo André: Editora Academia Cristã, 2008.
DUSSEL, E. El humanismo helénico. Buenos Aires: Eudeba, 1975.
_______.El humanismo semita. Buenos Aires: Eudeba, 1979.
FOHRER, G. História da religião de Israel. São Paulo: Paulinas, 1992.
GARCIA RUBIO, A. Elementos da antropologia teológica. Salvação cristã: salvos de quê e para que? Petrópolis: Vozes, 2007.
_______. Evangelização e maturidade afetiva. São Paulo: Paulinas, 2006.
LUZ, U. El evangelio ségun San Mateo. Vol. II. Salamanca: Ediciones Sígueme, 2005.
SAMPLEY, J. P. Paulo no mundo greco-romano: um compêndio. São Paulo: Paulus, 2008.
WOLF. H.W. Antropologia do Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1975.

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