Breve comentário de Gênesis 1
Luis Carvalho
Ao contrário do que muitas
pessoas pensam o texto de Genesis 1 não tem o intuito de informar detalhes
sobre a fundação do mundo, mas apontar como Deus triunfa soberanamente sobre as
adversidades, sobretudo, políticas, sociais e religiosas que legitimam a opressão
e o caos em nome de deuses – simulacros fetichizados – que em nada se
relacionam com o Deus soberano, apresentado nas escrituras.
Para melhor tratar do tema são
necessários dois passos: a) delimitação correta da perícope; b) datação do
texto.
Delimitação correta da perícope: O primeiro capítulo, ou perícope
completa, de Gênesis 1 compreende o capítulo 1 até o 2, 4a na versão de João
Ferreira de Almeida, atualmente a mais utilizada no Brasil. Sendo assim, o
capítulo compreenderia 31 versículos em que a palavra Deus (Elohim= plural de
deus) ~yhla aparece cerca de 34 vezes, indicando a
soberania do criador sobre os eventos históricos na memória de Israel.
Trata-se de uma estrutura poética e
litúrgica em que se faz importante a sonorização, com a nasalização de forma
correta para se compreender seu valor para a cultura cúltica do antigo Israel.
Juntamente com os Salmos esse é dos poemas mais fonéticos da Bíblia Hebraica,
que não teve seu valor reconhecido no meio do cristianismo por conta da forte
ênfase na questão criacionista, retratada de forma jornalística, não levando em
consideração as questões literárias e históricas da construção do texto.
Datação
do texto: No que diz respeito à datação do texto, tudo indica que seja um
texto do período exílico do 6º século a.C referente, portanto, ao cativeiro
babilônico. Nos períodos de crise, a memória da tradição mosaica era retomada
com forte ênfase no Deus libertador. Javé apresenta-se inicialmente a Israel
como um Deus libertador, que elege um povo para proclamar a libertação e a
justiça a partir das margens, sinalizado para seu caráter preferencial em
relação aos oprimidos.
Embora esse texto não se enquadre na
tradição javista. Há forte identificação com tal seguimento pelo fato de
pertencer à tradição mosaica – o fundador do javismo – e corresponder ao tom
apologético e litúrgico característico dos escritos mosaicos, com ênfase no
combate às religiões cananeias.
O capítulo em questão é um texto que
pode ser identificado como: litúrgico, poético, profético, subversivo e
apologético. A datação justifica-se por fazer contraposição direta ao Enuma Elish babilônico, que no período
exílico impunha-se à tradição hebreia, apontado para o panteão cananeu como
superior e legitimador da dominação sobre Israel.
Chamam atenção as relações diretas que
se fazem entre a terra #ra (eretz) e as divindades babilônicas wht (tohu) caos e whbw (vavohu) desordem. O indicativo dessa
passagem, mais do que apontar para uma realidade de criação, liga-se com o
momento existencial do povo numa situação de dominação. O caos e a desordem na
terra adquirem conotações concretas quando se faz conexão da narrativa descrita
com o povo cativo (desesperançado, sem seu referencial de fé (o templo) e com
suas crises e traumas) que se entendia como vencido pelas divindades
babilônicas e que, naquele momento, estava sob o domínio das mesmas.
Lendo o texto numa perspectiva
criacionista e simplória esses elementos passam despercebidos, mas com olhos
apurados e um pouco de cuidado e esmero teológico essas verdades saltam aos
olhos e permitem entender uma dimensão mais profunda desse relato.
O fator mais importante desse texto é
como Deus se apresenta. Elohim, o Deus acima dos deuses, apresenta-se colocando
ordem ao caos, numa intrigante e litúrgica trama em que os valentes deuses
babilônicos estão subjugados pela ação apascentadora do espírito de Deus. A
ruach hwrw (u ruach) é uma força feminina,
geradora de vida e supervisionadora da situação caótica em que o povo estava
inserido. Isso indica, sem dúvidas, o lado materno de Deus e seu cuidado em
relação a seu povo. A riqueza do texto hebraico, por vezes, fica limitada à
tradição patriarcal em que o Ocidente está inserido, apresentado Deus somente
como pai. Entretanto, já nos primeiros versículos da Bíblia Deus se apresenta
como pai, soberano, mas que ama com amor de mãe e coloca ordem ao caos subjugando
os inimigos pela força do seu poder. Sem contar que a dimensão teológica de
Deus dominando a face das águas, é também um texto apologético referente ao
controle de Deus em relação à Marduck.
Compreendendo essa primeira parte,
pode-se passar para a justiça de Deus em relação às divindades babilônicas.
Outra temática que ganha espaço na
narrativa é a questão dos astros e a maneira que Deus se relaciona com eles. A
partir do versículo 3 temos a justiça de Deus descrita de forma apologética e
subversiva, quando coloca os astros para governar o dia e a noite, organiza as
estrelas e cria a luz primeiro do que o sol. Aparentemente tais detalhes não
têm sentidos para os cristãos do século XXI, mas certamente para os judeus do
6º século a.C tais esses elementos tinham muita importância e significado para
seu contexto.
Quando o exército de Nabucodonosor
invadiu Jerusalém em nome do sol. Indicava para os judeus daquele período, mais
do que uma conquista militar. Para além de uma derrota militar aquela invasão indicava
a derrota do Deus Javé para o deus sol. Os judeus estavam sendo humilhados e
dominados em nome de uma divindade, que aparentemente triunfava sobre o Deus
libertador, que se apresentou a Moisés como o Deus dos oprimidos.
O último imperador babilônico mudou o
culto ao deus sol para a deusa lua, entendendo que a mesma prevalecera sobre o
sol e que era mais poderosa que ele. Isso sem contar os oráculos através das
estrelas que eram praticados desde os tempos do patriarca Abraão, o caldeu.
Todo esse panteão povoava o imaginário do povo judeu exilado e fazia com que
dentro de si muitos temores fossem despertados, gerando medo, caos e desordem
em suas relações.
Quando Elohim aparece subjugando os astros,
o narrador quer apontar para o caráter da justiça de Deus em favor de seu povo
humilhado e explorado. Por mais que tivessem sido, dominados e escravizados em
nome das divindades, Deus estava no controle de todas as coisas e a seu tempo
iria prover meios para que o povo levantasse-se e rompesse com as amarras da
dominação. Novamente o texto aponta de forma inexorável para a soberania de
Deus e sua identificação com os povos oprimidos. Além disso, sinaliza um
caráter profético, uma vez que, quem oprime os pequeninos faz força contra Deus
e pratica a injustiça.
Elohim. O Deus acima de outros deuses
mais do que um Deus criador é um Deus de justiça que não se compraz na opressão
e tem por intuito libertar o povo das amarras sócio-religiosas que legitimam a
escravidão em nome de deuses, simulacros e fetiches que oprimem a vida das
pessoas. A vocalização do texto, quando lido no hebraico evidencia seu tom
poético e litúrgico, provavelmente como parte integrante dos cultos realizados
no exílio e nas canções e momentos de resistência ao Império babilônico.
Com essas informações logo se chega à
conclusão de seu caráter subversivo, pois ao lê-lo numa perspectiva meramente
criacionista a riqueza desses detalhes escapam aos olhos. Assim como para
muitos a narrativa se resume a um texto informativo, aos antigos babilônicos o
texto não passava de uma epopeia, quando, na verdade, seu caráter era
encorajador, subversivo e profético, apontando sempre para a ação soberana de
Deus e seu caráter de justiça.
Na sequencia da narrativa têm-se a
criação dos répteis e da vegetação. A Enuma
elish descrevia a criação do mundo e todos seus desdobramentos como
uma disputa entre as divindades, sendo que, sua harmonia dependia da satisfação
dos desejos dessas divindades. A natureza como parte dessa criação era incluída
nessa relação, sendo sua manutenção obtida através de sacrifícios e
prostituições sagradas. Algumas relações entre narrativa babilônica e a hebreia
ajudam a comparar o descompasso entre as duas culturas.
Narrativa hebraica
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Narrativa babilônica
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Criação: propósito de Deus
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Criação: obra do acaso
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Relação entre Deus e a criação: criação de um Deus singular
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Relação entre os deuses e a criação: obra de um panteão. Conflito
entre os deuses.
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Ser humano: proposital
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Ser humano: objeto de disputa em prazeres dos deuses
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Deus organiza o caos
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Deuses promovem o caos
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Deus: soberano
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Deuses: lutando entre si
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Por fim temos a criação do ser
humano e a ordem de Deus para que domine a criação. O texto novamente precisa
ser entendido através de seu sitz im
lebem, ou seja, seu lugar vivencial. Na criação do ser humano – nessa
narrativa pela palavra – a ênfase é dada na questão do domínio sobre a criação.
Na verdade a direção apontada na
narrativa é querigmática e existencial. O ser humano (oprimido) não foi criado
para viver refém de ideologias políticas e religiosas que escravizam e ofuscam
sua imagem e semelhança em relação à Deus. Ele foi criado para ser livre,
autônomo e com força para triunfar sobre situações e sistemas (político,
teológicos, culturais, espirituais, etc.) que o oprimem.
cenas do filme Noé
A Narrativa do twtrbh rps (sefer bereshit) é um enunciado da emancipação humana frente às crises e dilemas que permeiam as situações da vida. Nesse sentido, mais do que uma narrativa da criação o texto trata de libertação, justiça de Deus, esperança, ânimo, poesia e declaração de autonomia de um Deus que se identifica com os oprimidos (socialmente, politicamente, espiritualmente, etc.) animando-os em seu processo de libertação.
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