Messianismo e banditismo

A teologia bíblica nunca foi meu forte. Isso é tão verdade que meus professores, via de regra, me dizem que como biblista até sou um bom teólogo sistemático. Ironias a parte, tem algum tempo que venho refletindo sobre a saga do famigerado Davi. Em diversas leituras que fiz do “homem segundo o coração de Deus”, encontrei consonância com um tema bem controverso: o banditismo social.

Um dos especialistas em banditismo social afirma que o fenômeno é típico de sociedades camponesas, e que tais pessoas, geralmente são vistas pela população como heróis, pelo fato de identificarem-se com os explorados e não se oporem diretamente ao rei. Sua oposição é aos corruptos e aos que ameaçam a ordem social, com pilhagens e roubos, geralmente são identificados com o ideal messiânico. (HOBSBWAM, 1975, p. 15 -22).

Na América Latina não são raros os casos de banditismo social. Temos, no Brasil, o clássico caso de Virgulino Ferreira, vulgo Lampião, no México o exemplo de Pancho Villa e em diversas localidades do continente juntam-se as dezenas e talvez centenas de exemplos similares a este. Davi não é uma exceção. Aliás, a gênese do povo hebreu remonta a essa condição, como aponta Gottwald em As tribos de Yahweh (GOTTWALD, 2004).

Não se pode dissociar o ethos de um povo ao analisarmos seu comportamento. Ao menos é isso o que nos diz Roberto Da Matta quando analisa o comportamento do brasileiro à luz de Pedro Malasartes (DA MATTA, 2000). Para esse autor o "jeitinho" brasileiro é herança da malandragem portuguesa personificada no personagem Malasartes. A crise ética e moral do país, para Da Matta, seria fruto dessa influência.

Na história de Israel podemos identificar um grupo que se assemelha com os bandidos sociais, os hapiru´s.  Grupo que se caracterizou no Oriente Antigo como pessoas com direitos limitados e escassos recursos econômicos; prestadores de serviço, quando solicitados (SCWHANTES, 2003, p. 51). Eram agricultores que se retiraram para cidades e, depois de fazem-se foras da lei,  sobreviviam como mercenários ou outras formas. No caso de Israel os hapiru´s escolheram a montanha para começar uma nova vida fora do alcance dos reis. O emblemático é que encontramos tais características quando lemos em 1 Samuel 22, 1 e 2.

Depois Davi, retirando-se desse lugar, escapou para a caverna de Adulão. Quando os seus irmãos e toda a casa de seu pai souberam disso, desceram ali para ter com ele.
Ajuntaram-se a ele todos os que se achavam em aperto, todos os endividados, e todos os amargurados de espírito; e ele se fez chefe deles; havia com ele cerca de quatrocentos homens
.

Após esse episódio nota-se, nos capítulos e versículos posteriores, Davi oferecendo seus “serviços” as autoridades circunvizinhas. As semelhanças entre os cangaceiros do nordeste brasileiro e dos Haiduks com os meliantes de Davi, são muitas, que vão desde identificação popular ao messianismo.

É sempre curioso pensar que o messias pode ser um subversivo, alguém que rouba dos ricos para dar aos pobres. Nesse sentido as histórias de Robin Hood, Carcará, Lampião e Davi coadunam, pois todos eles são elementos subversivos que se transformaram e messias populares. Talvez o sucesso de Davi esteja, atrelado muito mais à sua fama como herói nacional do que como rei. Seu reinado foi um completo desastre, ao contrario de sua ascensão ao trono. Curioso isso. Pensar um herói aclamado e constatar um rei mal sucedido.

Os hapiru´s, são apontado como um dos grupos que constituem as raízes históricas da Israel, por isso, a sagração de Davi está ligada a eles. Isso não é nada mais do que retomar as práticas do antepassados, projetando-as no cotidiano – algo que o antigo Israel sabia fazer de forma exímia . Quem versa magistralmente sobre isso é Gottwald, quando introduz o conceito de retroprojeção ideológica. Uma técnica adotada pelos escribas de Israel para ideologizar a memória do povo, recriando fatos, enaltecendo figuras, escrevendo biografias complementares - como foi no caso de Davi e assim por diante.

Teria o prestigio de Davi advindo de sua caminhada como errante? O famigerado rei deve sua recepção como messias ao banditismo social? Essas são perguntas que ficam para as pessoas que querem aprofundar os conhecimentos sobre essa figura controversa.

Caminhando ainda nesse linha. Qual relação podemos fazer disso com o grupo de Jesus de Nazaré? Uma vez que esse é aclamado como filho de Davi pela teologia imperial. Suas andanças pela Palestina, sobretudo, no nordeste de Israel dão-nos pistas de que há alguma ligação com esse ethos histórico. Horsley (2003) afirma que o grupo do nazareno pode ser facilmente associado ao messianismo rural que consagrou não somente Davi, mas Elias e Eliseu. 

Na mesma linha Crossan (1999) defende que a característica de Jesus de Nazaré é o perípatos, ou seja, itinerância e a magia, típica dos movimentos messiânicos. O assunto é extenso e complexo, esse pequeno comentário é apenas para aguçar o curiosidade de algumas pessoas e despertar o interesse pela pesquisa sobre o tema.

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